Eu ando monotemática. Não é porque acho gostosinho ou estou com falta de assunto. Ando monotemática porque estou com medo. Nunca me esqueci das aulas de História sobre regimes ditatoriais. Na adolescência, fiquei chocada ao estudar sobre o nazismo, me tremi toda ao saber que outros países haviam tido governos fascistas e entrei em pânico ao ter consciência da ditadura militar brasileira. “Como o povo permitiu que o governo agisse assim?”, era a pergunta que dominava a minha mente ao tomar conhecimento de tanto terror e temor.
Por Clara Novais, no Medium
Mal eu sabia que, ainda na minha juventude, veria com meus próprios olhos que tipo de gente apoia um político com discurso de ódio contra as minoria e paixão pela violência: meus parentes. As mesmas pessoas que me ensinaram sobre dar sempre o melhor de mim e a fazer tudo com carinho e com afeto são as que, agora, apertarão o gatilho contra eu e os meus amigos.
A dor maior, neste momento, não é ver um político lunático com discurso fascista tendo grandes chances de assumir a Presidência do Brasil. Isso dói bastante, é verdade. Porém, o meu peito sangra para valer é ao ver quem eu amo com todo o meu coração aplaudindo esse homem. E não venha com esse papo de “sua tia não é fascista”. A minha é sim. Ela acha que só é torturado “quem merece”, que negro fede, que nordestino é burro e que pobre tem muitos benefícios. Ela acha que mulher violentada não se deu ao respeito, que bandido bom é bandido morto, que ser LGBT é promiscuidade e que “as minorias devem se curvar as maiorias”. Minha tia é fascista sim. E o pior: ela é plural. São tias, tios, primos, primas, amigos de infância…
Sei que é cliché, mas meu livro favorito é O Diário de Anne Frank. Diante de toda a tristeza envolvida nos relatos que a adolescente sonhadora depositava em seu caderno enquanto se escondia do governo nazista para tentar salvar a própria vida, um detalhe me dava certo consolo. Anne e sua família só tiveram onde se esconder e como se alimentar e se limpar porque havia quem os ajudasse. Ufa. Apesar de tudo, houve humanidade, empatia e amor durante o nazismo. Enquanto muitos delatavam seus vizinhos e amigos de infância, que acabavam sendo encaminhados para campos de extermínio, haviam pessoas que se arriscavam para proteger os judeus.
Quando estudante, gostava de imaginar que, em uma situação hipotética de precisar viver em um governo parecido, eu seria esse tipo de gente. Enchia a boca para dizer para as minhas amigas que, sem sombra de dúvidas, eu me arriscaria para tentar salvar algumas vidas. Parecia óbvio. Quando o governo ameaça a existência dos próximos, a única alternativa para quem está em uma situação de privilégio é tentar protegê-los, não? Pensava o mesmo sobre a ditadura militar. Como ficar calado enquanto outros são massacrados nas ruas por lutar pela democracia para todos?
Ao mesmo tempo, eu sabia que essa fervor para lutar contra injustiças era uma exclusividade minha. Desde pequenininha, sofria tentando me defender ou defender meus amiguinhos quando julgava alguma situação injusta. Ao mesmo tempo, nunca fui muito boa em abaixar a cabeça para autoridade. Minha mãe, quando afetada, me chamava de atrevida. Quando afastada, me pedia para segurar meu impeto por medo de que eu me machucasse no processo (mais por dentro que por fora).
A despeito de nunca ter imaginado meus parentes lutando ao meu lado, nunca imaginei que os veria do lado oposto. Dentre as possibilidades – desobedecer o opressor, tentar levar a sua vida na boa apesar dos pesares e colocar em risco os oprimidos–, pensava que meus parentes ficariam no meio. Afinal, o desejo de se proteger é legítimo. Ninguém é obrigado a confrontar tudo e todos. A maioria só quer ficar na paz. E tudo bem. O problema é quando esse desejo afeta a existência do outro. E é exatamente o que está acontecendo agora.
As suásticas no braço foram substituídas, no Brasil de 2018, por adesivos com o número 17 no peito (ou filtros semelhantes na foto do Facebook). Enquanto isso, os da campanha “Ele não” fazem as vezes da Estrela de Davi. Discorda do “mito”? Doze facadas. Mulher feminista? Suástica cravada na costela. LGBTQ+? “Toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado”. E isso é só o começo.
Inocente, tentei dialogar com a maioria dos meus parentes. Confrontei seus preconceitos. Alertei sobre a indústria de fake news promovida pelo próprio candidato. Falei sobre discurso de ódio, violência nas ruas, tortura, os perigos da liberação do porte de arma, sobre meus amigos, sobre mim. Lembrei que sou uma mulher jornalista feminista que mora sozinha. Expliquei como o voto deles coloca o meu bem-estar e a minha vida em risco. Nem isso funcionou.
Desde que o Lula fique na cadeia e o PT saia do poder, está tudo bem. É só não abrir a boca no lugar errado. É só se esforçar para se manter no padrão. É só se proteger. É só se anular. Fácil, né? O Lula na cadeia, o PT longe do poder, pobres sem benefícios financeiros e estudantis, gays sem rebolar e/ou dar as mãos rua, mulheres deixando de se achar donas do próprio corpo e do próprio destino, transexuais presos aos gêneros determinados em seus nascimentos, negros parando de pensar que são gente como a gente. Deus acima de tudo, Brasil acima de todos. E por aí vai.
É, eu ando mesmo monotemática. É que, além de estar com medo dos próximos anos, está difícil de aceitar que minha tia, de fato, é fascista. É mais fácil me manter na ilusão de que meus parentes foram contaminados pelas fake news. É mais fácil acreditar que informação de qualidade e uma boa conversa podem fazê-los acordar. É mais fácil pensar que eles se importam com o mundo para além do próprio umbigo. É mais fácil. Mas não é verdade.
Sigo tentando.