Mulher tinha 63 anos e morreu em hospital municipal em Miguel Pereira (RJ), na terça-feira (17)
Vinícius Lemos, Da BBC News Brasil
Por duas décadas, uma empregada doméstica trabalhou na casa de uma família no Leblon, no Rio de Janeiro.
Para chegar a uma das áreas mais nobres da capital, saía do município de Miguel Pereira, na região serrana do Estado, e percorria mais de 100 quilômetros.
De segunda a sexta-feira, ela passava os dias no apartamento da família para a qual trabalhava. Aos fins de semana, retornava para Miguel Pereira.
Na segunda-feira (16), conforme os familiares, a mulher, que era diabética e hipertensa, estava no trabalho quando começou a passar mal. Um parente foi ao local, chamou um táxi e a levou para um hospital público em Miguel Pereira, por volta das 18h.
O primeiro diagnóstico apontou para infecção urinária. Na manhã seguinte, ela apresentou quadro de intensa dificuldade respiratória.
Pouco depois, a família contou aos médicos uma notícia que havia acabado de receber: a patroa dela, de 62 anos, estava com a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.
Os médicos passaram a considerar o caso da empregada doméstica como altamente suspeito para o novo coronavírus. O quadro logo piorou, a paciente não resistiu e morreu horas depois, no início daquela tarde.
O exame que confirmou que ela havia sido infectada pelo vírus foi concluído somente dias depois, na manhã de quinta-feira (19).
O caso foi o primeiro confirmado de morte por coronavírus no Rio de Janeiro. Horas depois, também foi confirmado que a morte de um idoso de 69 anos, de Niterói, também foi causada pela covid-19.
Em todo o país, até esta sexta-feira (20), haviam sido confirmadas 11 mortes em razão do novo vírus — além dos casos no Rio, há nove em São Paulo.
A morte da doméstica foi comunicada ao Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio de Janeiro. O MPT ainda analisa se o caso será alvo de abertura de inquérito.
Patroa foi à Itália
A idosa de Miguel Pereira fazia parte de um grupo que cresceu nos últimos anos: o das empregadas domésticas.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018 apontaram que 6,24 milhões de pessoas trabalhavam como domésticas no Brasil — maior número desde 2012.
Enquanto aumenta a quantidade de trabalhadores domésticos no país, cresce também a informalidade na profissão. Isso porque o mesmo levantamento do IBGE apontou que o total de domésticos com carteira assinada caiu 11,2%.
Dos 6,2 milhões, 4,4 milhões não têm carteira assinada. A reportagem não obteve acesso a informações sobre o regime trabalhista da doméstica que foi vítima do coronavírus.
No Leblon, a patroa dela havia retornado recentemente de uma viagem para a Itália, país que enfrenta uma explosão de casos do novo coronavírus.
Parentes da doméstica relataram à Secretaria de Saúde de Miguel Pereira que ela não sabia que a patroa poderia ter coronavírus, apesar de a mulher estar reclusa no apartamento desde que voltou da Europa.
Desde a sexta-feira (13), a trabalhadora não se sentia bem. No domingo (15), a situação piorou. Ainda assim, ela seguiu para o trabalho no dia seguinte, mas passou mal. Foi encaminhada por parentes ao Hospital Municipal Luiz Gonzaga, em Miguel Pereira.
Ela deu entrada na unidade de saúde com pressão alta e problemas cardíacos. Os exames apontaram infecção urinária e, segundo a Secretaria de Saúde de Miguel Pereira, a paciente passou a receber acompanhamento.
Os problemas respiratórios no dia seguinte, por volta das 9h, acenderam um alerta entre a equipe médica que a acompanhava.
As suspeitas de que a mulher teria novo coronavírus cresceram logo que a patroa dela ligou para familiares da empregada e disse que havia contraído o vírus. A informação foi repassada à Secretaria de Saúde do Município.
“Por telefone, depois que a família nos informou sobre esse fato, a patroa dela confirmou que estava com o coronavírus. Chequei essa informação com o laboratório, que também confirmou a informação”, relata Camila Miranda, secretária municipal de Saúde de Miguel Pereira.
A secretária afirma que não há informações sobre se a patroa dela sabia que estava com o coronavírus e manteve a funcionária em sua casa. A reportagem não conseguiu contato com a moradora do Leblon. Não há informações sobre o estado de saúde da mulher.
Desde a morte da doméstica, sete parentes dela, entre irmãos e sobrinhos, estão em isolamento por terem tido contato com a idosa.
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Miguel Pereira, nenhum deles apresentou sintomas até o momento. “Mas continuarão sendo monitorados e caso tenham qualquer sintoma, poderão ser internados”, diz Camila Miranda.
A pasta municipal afirma que todos os profissionais tiveram os cuidados para atender a paciente com o novo coronavírus desde o momento em que ela entrou na unidade de saúde.
“Estamos seguindo todos os protocolos do Ministério da Saúde para enfrentar o novo coronavírus. Os trabalhadores do hospital estão com os equipamentos adequados e usam máscaras para atender os pacientes que chegam”, afirma Miranda.
Após a morte, 12 profissionais de saúde do hospital, entre médicos, enfermeiros, técnicos e um diretor administrativo, foram afastados e estão em isolamento porque tiveram contato com ela e apresentaram sintomas de gripe.
Apesar da redução de servidores, a Secretaria do município afirma que os atendimentos na unidade de saúde estão ocorrendo normalmente.
Investigação do MPT
A morte se tornou destaque em veículos de imprensa de todo o país. Com base nessas publicações, uma notícia de fato foi encaminhada ao MPT — não há detalhes sobre a pessoa responsável pela denúncia.
O procedimento pode dar origem a uma investigação. Com base nele, o procurador responsável irá decidir se o caso deve ser arquivado ou precisa ser alvo de um inquérito para uma apuração mais aprofundada.
“O procurador precisa avaliar se houve ilícito e se é um caso de interesse social. Ele pode arquivar se considerar que não houve ilegalidade ou se não há dimensão social para a atuação do Ministério Público. Pode ser que ele considere que seja um caso de lesão individual e que isso precisa ser cuidado por um advogado ou defensor público. O MPT defende o interesse maior da sociedade, não de cada pessoa”, explica João Batista Berthier, procurador-chefe do MPT do Rio de Janeiro.
Caso o MPT dê prosseguimento ao caso, a notícia de fato poderá culminar em uma ação civil pública e ser encaminhada para a Justiça. A partir de então, um juiz será o responsável por avaliar se será necessário aplicar punições.
Sobre o caso específico da doméstica, ainda não há nenhuma atualização desde a chegada da notícia ao Ministério Público. O caso será conduzido pelo procurador Sérgio Favilla, que não quis comentar sobre o procedimento que está em fase de análise.
O procurador-chefe do MPT-RJ também não comenta o caso específico, mas afirma que mesmo com uma situação atípica como a pandemia do novo coronavírus, é fundamental que o empregador preserve a saúde do trabalhador.
“Se há uma pessoa com covid-19 no ambiente, é fundamental suspender o trabalho. É uma atividade de risco para o trabalhador”, declara.
“Em uma situação como a de uma pandemia que estamos vivendo, vamos precisar nos basear nos princípios que norteiam o Direito, como o direito à saúde. O trabalhador é a parte mais fraca e ele precisa ser protegido”, declara.
Berthier afirma que não há dúvidas de que uma empregada doméstica precisa ser liberada, caso um de seus patrões esteja com o novo coronavírus.
“Isso vale para qualquer funcionário, não apenas empregadas domésticas. Se há alguém com sintomas, é preciso manter distância dos demais”, assevera.