“Há um grande preconceito contra a comunidade negra, que se esconde sob a capa da cordialidade.” A afirmação foi feita pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Ari Pargendler, ao abrir nesta segunda feira (30) o encontro “Comunidade Negra e a Justiça no Brasil”, promovido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e pela organização não governamental Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro).
Segundo o presidente do STJ, a comunidade negra – “escravizada e depois usada como mão de obra barata” – ainda não se libertou completamente. “Há um caminho muito longo a percorrer e o STJ, pelos seus ministros e servidores, está engajado nessa luta”, disse Pargendler.
Ele reconheceu que, nos próprios quadros do Tribunal, “a comunidade negra não está representada como na sociedade”. No Brasil, segundo o IBGE, os negros são 50,8%. “No STJ, nem chega perto disso”, afirmou, comentando que os brancos se beneficiam de “vantagens comparativas” na hora de fazer um concurso público, por conta do nível de renda mais alto, que proporciona melhores condições de ensino.
O encontro, realizado na sala de conferências do STJ, foi articulado pelo diretor-geral da Enfam, ministro Cesar Asfor Rocha, e pelos dirigentes da Educafro – rede comunitária de cursinhos pré-vestibulares sem fins lucrativos e com marcante atuação política na luta contra a exclusão social. O objetivo foi discutir a participação do Poder Judiciário na construção de uma verdadeira democracia racial. “Não me recordo de outro evento como este no Tribunal. É o primeiro encontro com o intuito de defesa da cidadania negra”, afirmou o ministro Benedito Gonçalves, que é negro e foi designado para coordenar o encontro. Outro afrodescendente com alto posto na magistratura nacional, o ministro Carlos Alberto Reis, do Tribunal Superior do Trabalho, também participou do encontro.
Cerca de 120 pessoas, em grande parte militantes do movimento negro, lotaram a sala de conferências. Dez ministros do STJ e dirigentes de algumas escolas estaduais de magistrados prestigiaram o evento.
A secretária de Políticas de Ações Afirmativas do governo federal, Anhamona Silva de Brito, apresentou dados sobre a discriminação racial no Brasil para defender a reflexão dos poderes públicos sobre essas questões e propôs a inclusão do problema racial no conteúdo dos cursos de formação de magistrados.
A defesa das cotas para afrodescendentes nas universidades públicas foi o principal ponto destacado pelos representantes do movimento negro na luta pela inclusão social. O diretor-executivo da Educafro, frei David Santos, criticou ações judiciais contra o sistema de cotas e pediu que a Justiça observe os tratados internacionais que condenam a discriminação racial.
Para mostrar que “o Poder Judiciário não está fugindo do seu papel”, o ministro Luis Felipe Salomão apresentou um levantamento sobre a jurisprudência do STJ com 22 decisões favoráveis à legalidade e constitucionalidade das políticas de cotas. Em uma delas, em que o relator foi o ministro Felix Fischer (atual vice-presidente do Tribunal), a Quinta Turma considerou que uma lei estadual do Paraná, prevendo cota em concurso público, estava de acordo com a ordem constitucional do país.
Ao mesmo tempo, Salomão citou dados que evidenciam a exclusão: 98% dos cargos do Poder Judiciário, 95% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 97% no Senado Federal são ocupados por brancos – os quais também ocupam 95% das vagas de professor universitário. O ministro revelou que no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos, foram julgados apenas nove casos de discriminação, com três condenações.
Questionado sobre possível abrandamento no tratamento dado pela Justiça aos crimes de racismo, que em muitos casos passaram a ser tratados apenas como injúria, o ministro Felix Fischer afirmou que a questão não diz respeito somente à jurisprudência dos tribunais, mas à lei. “Houve uma alteração na legislação, creio, para evitar justamente uma interpretação muito benevolente, que desqualificava o crime para injúria no caso de ofensa direta à pessoa”, explicou o ministro.
Com a nova lei, de 2003, a injúria de natureza racista passou a ter pena mais severa. Segundo Felix Fischer, a mudança não deixou a situação mais favorável ao ofensor, apenas evitou que sua conduta fosse considerada injúria simples, com o que a pena seria muito branda. Já os crimes de preconceito contra a comunidade negra ou outras etnias continuam sendo punidos com base na Lei n. 7.716/1989.
Também acompanharam o encontro os ministros do STJ Humberto Martins, Napoleão Nunes Maia Filho, Sidnei Beneti, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e o desembargador convocado Vasco Della Giustina.
Fonte: Mulher Negra