Minorias e positivismo

 

 

por: MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA


Ações afirmativas, como as cotas para negros no ensino superior, podem ser eficiente meio para a queda de alguns desses mitos


ESTÁ PREVISTA para o início de março, no Supremo Tribunal Federal, audiência pública sobre políticas de ação afirmativa de reserva de vagas no ensino superior, em vista de ações judiciais que tratam do tema das cotas raciais. A relevância da matéria, e da manifestação a esse respeito pela suprema corte, é óbvia.

Enfrentando a questão das minorias, dentre elas a racial, percebe-se o seu tratamento na perspectiva essencialmente positivista.

Por minorias, entendem-se aqui grupos que, na perspectiva das relações de poder, encontram-se em estado de sujeição em face de outros a partir de certos aspectos, como racial, de gênero ou de etnia. Isso se dá ainda que tais agrupamentos sejam numericamente expressivos.

Já o positivismo, em apertada síntese, trata-se de método que almeja uma racionalidade para a explicação dos fatos sociais semelhante àquela típica das ciências naturais, prestigiando, com isso, as noções de organização e de uma suposta cientificidade hasteada na neutralidade axiológica.
O tema das cotas, não raro, sucumbe à tentação de ser tratado a partir de tais postulados. Para comprovar a assertiva, inicio pela ideia, advogada por vários, de que não existiria mais a noção de raça, o que seria confirmado pelo que há de mais moderno no estudo da genética. Com isso, não seriam possíveis ações afirmativas com base em algo que não existe.

Trata-se de constatação tipicamente positivista, que submete o tema da raça a uma investida meramente biológica, com clara insuficiência na resposta de matéria tão complexa. Aliás, o positivismo tem o costume de se apropriar das questões sociológicas a partir de categorias tipicamente biológicas, retirando a complexidade de algumas categorias e naturalizando as consequências mais nefastas.

Assim, quando se afirma que não existe mais sentido em falar em raça, especialmente em países como o Brasil, em que houve um elevado grau de miscigenação, olvida-se que, aqui, os principais centros de poder são ocupados por brancos.

Esquece-se, assim, que a matéria envolve o poder, o que afasta a disputa racial de meras ilações de natureza biológica -até mesmo porque a luta pelo poder se processa de forma distinta entre os animais irracionais.

Aliás, essa questão, para o direito e, portanto, em certa perspectiva do poder, já se encontra resolvida. A Constituição admite o conceito de raças em diversas oportunidades (como no seu artigo 3º, inciso IV).

Nos mesmos moldes, pode-se inserir, por exemplo, a discussão relativa às mulheres. Para essas, não raro se diz ser natural que, em vista da maternidade, sejam-lhes atribuídas mais funções no âmbito da vida privada do que ao homem.

Em um mundo tão competitivo e em que se fala constantemente em escassez de recursos, vive-se o pior pesadelo positivista: o de naturalizar a exclusão de alguns, por critérios como o racial ou o de gênero, para que outros possam melhor viver. E fica a triste constatação de que, se a natureza é seletiva porque é da sua essência, o mesmo jamais poderia se dar com seres humanos em suas relações sociais. Caso contrário, estaria autorizado, a partir de interpretações legalmente consentidas, verdadeiro estado de barbárie, em que se referendaria dissimulada antropofagia social.

Isso o direito não pode convalidar. Na realidade, o que se percebe é que tais argumentos, de índole positivista e que frequentemente assumem lugar no imaginário popular, escondem aspectos ideológicos de uma sociedade que pretende deixar claro o lugar que deve ser ocupado por cada um dos grupos eleitos como oprimidos. Redundam, portanto, em aspectos, aparentemente científicos para a preservação, por alguns, de seus espaços de poder, e precisam, para o bem de nossa sociedade, ser desmistificados.

Ações afirmativas, como as cotas para negros no ensino superior, podem consubstanciar, no contexto de uma política pública de inclusão social bem organizada, eficiente meio para a queda de alguns desses mitos.

O Brasil tem uma dívida social que precisa ser urgentemente resgatada.

Não podemos mais nos entregar a propostas que, de forma idealizada, sejam protraídas no tempo.

Afinal de contas, considerada a abolição da escravatura, o atraso para a solução do problema data de apenas mais de cem anos.

 


MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA , 45, doutor e livre-docente pela USP, professor associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social e da área de concentração em direitos humanos da pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, é juiz federal em São Paulo (SP).

+ sobre o tema

Salve Zumbi e João Cândido, o mestre sala dos mares

Por Olívia Santana   Há 15 anos, após uma grande marcha...

Olimpíadas de Tóquio devem ser novo marca na luta por igualdade

Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968,...

Lei 13.019: um novo capítulo na história da democracia brasileira

Nota pública da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais...

para lembrar

PSDB e PMDB perdem prefeituras; PT, PSD e PSB ganham peso

O PSDB saiu menor das urnas, em comparação...

Em prédio novo, escola de SP não possui itens básicos para estudar.

Prédio novo também continha sobras de material de construção...

Jessé Souza: Escravidão é o que define sociedade brasileira

Reescrever a história dominante de que a corrupção é...

Haddad tem 49%, e Serra, 33%, diz Ibope

O Ibope divulgou, nesta quarta-feira (17), a segunda pesquisa de intenção...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=