A execução do congolês Moïse Kabagambe a pauladas em um quiosque de praia no Rio de Janeiro choca a estética de quem repete que nós não somos racistas – uma ficção limpinha e cheirosa criada para garantir que tudo fique como está. O vídeo dói e, por isso, deveria ser exibido nas escolas para fomentar o debate sobre quem somos como sociedade. E garantir que as gerações mais novas não reproduzam os crimes da nossa.
Se você tem a impressão de essa cena já aconteceu antes, está correto. Com algumas variações, ela se repete, e repete, e repete, já fazendo parte da paisagem de um país definido pelo racismo em todos os níveis de suas relações sociais. A diferença é que, nos últimos anos, as agressões, que sempre ocorreram, podem ser assistidas por milhões nas telas de seus celulares.
Isso ajuda a diluir a violenta mentira do “racismo é algo que está na sua cabeça” ao passo que faz com que muitos se reconheçam no “já aconteceu algo semelhante comigo”.
Não é a primeira vez que uma pessoa negra é morta ou torturada em espaços públicos. E, considerando que há muitos que se sentem à vontade de incorporar o capataz que espanca e mata negros em estabelecimentos comerciais, mas também nas delegacias e periferias, e parecem apreciar o seu trabalho de colocá-los “em seu devido lugar”, não será a última.
Outras cenas com variações nos chocaram recentemente. Causaram indignação, mas não evitaram a cena seguinte. Por exemplo:
Em abril de 2021, Bruno Barros e Yan Barros, tio e sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do supermercado Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro. Imagens deles rendidos após o furto circularam pelas redes. Os seguranças do mercado teriam sido entregues a traficantes para que fossem punidos e mortos.
Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas foi assassinado em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra. Imobilizado, acabou sufocado e espancado até a morte no estacionamento por um segurança e um policial militar temporário.
Em 14 de fevereiro de 2019, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga foi morto por um segurança do supermercado Extra na mesma Barra da Tijuca do quiosque Tropicália, onde Moïse foi morto. Ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre o jovem negro. Pessoas alertaram que Pedro estava sufocando, mas a sessão de tortura continuou. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.
Em julho de 2019, um jovem negro de 17 anos foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar um furto barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy na periferia de São Paulo. O mercado disse que os seguranças eram de uma empresa terceirizada – como sempre. Como em Abu Ghraib, no Iraque, os próprios algozes gravaram as cenas.
Em julho de 2015, um homem negro de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a Polícia Civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas. O rapaz poderia ter sido entregue à polícia para ser devidamente processado. Mas o pelourinho, que canta alto na alma de parte dos brasileiros, falou mais alto.
Em agosto de 2009, Januário Alves de Santana, acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), foi submetido a uma sessão de tortura. “O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?”, perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em 72 vezes. Na cabeça dos seguranças do supermercado, um negro não poderia ter carro de bacana branco.
Cada negro e negra deste país tem mais histórias como essa para contar. E sabem que os espancamentos e assassinatos têm o mesmo DNA do racismo cotidiano que, muitos de nós, consideramos inofensivo. Ou pior: nem consideramos como racismo.
Seria ótimo para a consciência dos brasileiros se os torturadores e assassinos fossem apenas demoníacas. Porque assim, o mal, estaria justificado e longe de nós. Mas são nossos amigos, colegas de trabalho, familiares ou nós mesmos, que reconstruímos diariamente em prática o sistema que leva até a normalização dessas torturas e mortes. Um cidadão comum pode se tornar um Adolf Eichmann apesar de achar que não.
Sem demérito para outras pautas sociais e políticas, isso seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas do país em protesto, como estão fazendo movimentos negros em várias cidades do país. Mas, como já disse aqui, a morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado, da iniciativa privada, de milicianos ou de outros cidadãos não vale o arranhão deixado na caçarola por uma noite de bateção de panelas. Esse racismo não é um acidente, mas parte de um projeto que é violento com a população negra e pobre em nome da manutenção de nossos privilégios.
Daí, quando professores decidem discutir, na sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defensores de uma Escola Sem Cérebro ameaçam processar e morder, dizendo que isso é ser “ideológico”.
Na opinião de uma parte considerável, não há racismo no Brasil. Apenas “coincidência” e “azar”. Também não há genocídio de jovens pobres e negros pelas mãos da polícia, do tráfico, da milícia. “Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os ‘homens de bem’ seguem a lei e nada acontece com eles.”
Já perguntei aqui antes, mas vale repetir: Como querer construir um futuro se a maioria já nem se lembra de Ágatha, João Pedro e Marcos Vinícius, crianças cujas mortes nos envergonharam no passado recente?
Ou contamos essas histórias e mostramos essas imagens até que elas entrem nos ossos de nossas crianças para que elas conheçam o país que precisarão transformar ou a tortura e a morte de pessoas negras continuarão acontecendo num Brasil que as considera uma necessária tarefa cotidiana de sua reprodução social.