Moradas em Sampa

Ninguém mora em São Paulo. Pois existem cerca de 65 mil logradouros na cidade (entre ruas, avenidas, praças, viadutos). No máximo mora-se numa região. Ou até mesmo em um bairro. Tem gente que nasce e morre na Mooca. Eu não nasci em Sampa. Tinha 15 anos quando minha família veio do Rio para cá. Meu primeiro bairro paulistano foi os Campos Elísios, na região do Centro. Era um lugar curioso, abrigava enormes casarões, entre eles, o antigo Palácio do Governo, na avenida Rio Branco. Quando chegamos – primeiro na rua Conselheiro Nébias, depois na Ribeiro da Silva –  o bairro, antes chique, vivia serena decadência. Muitos dos casarões estavam abandonados e postos à venda. Outros, abrigavam cortiços. Então era um bairro pátina, a cor da memória.

Por Fernanda Pompeu em seu blog

Casa da Sagarana. Arte da Tereza Meirelles

Ao sair da casa de mamãe e papai, o endereço foi o bairro da Previdência, do outro lado do rio Pinheiros. A casa era uma República formada por amigos da ECA-USP.  A rua se chamava Eliseu de Almeida. Bucólica. Tinha um córrego e até pinguelas para atravessá-lo. Nas margens, burros pastavam. À noite, ouvíamos sapos. Quando chovia muito não dava para sair de casa. A República ficava ilhada cozinhando autênticas gororobas e ouvindo a todo volume o Hurricane do Bob Dylan. Hoje, o córrego está aterrado. A Eliseu de Almeida é um avenidão e o Bob ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

A outra parada foi rápida. Na rua Padre Carvalho, em Pinheiros. Era um predinho de 3 andares. Tinha uma síndica feroz. Ela odiava as reuniões que aconteciam no meu apê. Reclamava do barulho, das visitas, das risadas – que nesta época da vida eram muitas e altas. Uma vez meu pai foi me visitar e ela o pegou na escada do prédio, disse: Sua filha recebe homens no apartamento. Coitada, ela não sabia nem 1/3 da missa. Quando mudei, me vinguei deixando no hall que dava para a rua uma enorme e imprestável televisão. Menti que viria buscá-la depois. Pelo menos por 1 ano, passava em frente ao prédio só pra ver a tv no hall.

De Pinheiros pulei para as Perdizes, também na zona oeste da cidade. Morei na rua Cardoso de Almeida. Foi uma experiência incrível. Éramos uma comunidade de amigas feministas. Dávamos festas que amanheciam. Algumas vezes, exausta, eu me deitava entre duas caixas de som ativas. E não é que eu dormia profundo? Foi o ponto alto da minha juventude. Sexo, drogas, rock roll e muita literatura. Foi na Cardoso de Almeida que comecei a escrever meu único romance, o Cá Camila ou Uma Invenção de Alegria. Toda vez que passo por lá (e passo muitas vezes) a releio como uma casa encantada.

Da Cardoso voltei para Pinheiros. Morei na Capote Valente, em casa hoje demolida. Meu quarto ficava no porão, com uma janela que dava para a rua. Eu escrevia sem parar. Parecia que havia asas nos meus dedos. A casa não tinha portão. Uma manhã dois caras engravatados pararam na minha janela e perguntaram pelos documentos. Eu disse: Que documentos? Da firma, eles responderam. Eu exclamei que não tinha firma nenhuma. Eu era uma escritora, não uma contadora. Os caras foram embora.

Um tempo depois eu também fui embora para a rua debaixo, a Alves Guimarães. Era um sobrado tipicamente paulistano. Com varandinha fake e tudo. Ficava ao lado de um restaurante espanhol, o Don Curro. Uma rua bem ruidosa, mas também colorida. Meu escritório era no andar de baixo. Bem elegante. Eu continuava martelando o Cá Camila nas teclas de uma Olivetti eletrônica (presente do meus pais). Também era uma casa de amigas. De lá fizemos uma viagem ao México. Na volta, o lar se desfez.

Daí voltei a atravessar a ponte sobre o rio Pinheiros. Fui morar no Jardim Bonfiglioli. Bairro às margens da rodovia Raposo Tavares. A vizinhança era cheia de japoneses. Foi a casa de arquitetura mais careta em que morei. Eu apreciava o bairro até o dia em que fui levar uma amiga ao aeroporto de Cumbica. Na volta, a casa estava com as luzes acesas. Batata! Foi roubada. Levaram TV, VHS, gravador de voz, liquidificador e um pouco de grana. Por pura raiva, os larápios amassaram os papéis que havia sobre a minha mesa. A vizinha contou que viu um pequeno caminhão estacionar e embarcar tudo. Achei que você estava de mudança. A casa perdeu a graça. Voltei para Pinheiros.

De novo na Capote Valente, mas agora era um apartamento. Grande e com 3 quartos. Também houve outra mudança, comecei a fazer roteiros para vídeo e tv. Trabalhava com o que aparecesse. Era muito acém. De vez quando rolava um filé mignon, por exemplo, roteiros para a série Mundo da Lua, da TV Cultura. Também fiz roteiros interessantes para pequenas produtoras de vídeo. Instigantes de escrever. Foi nesse apê que pus o the end no Cá Camila. Mandei para várias editoras que devolveram cartinhas com 3 letrinhas: Não. Também teve outra coisa chata: peguei uma síndrome de pânico.

A próxima parada foi em Higienópolis. Em um apartamento gigante na Albuquerque Lins. Se perguntarem qual meu bairro predileto, a resposta vem na ponta da memória: Higienópolis. Lá tem tudo: sinagogas, lojas com comida kosher, cafés, boas padocas, arquitetura agradável de olhar. É bairro com terreno plano e calçadas largas. Vizinho da popular Santa Cecília. A piadinha da época era chamar Higienópolis de Tel Aviv e Santa Cecília de Faixa de Gaza. Muito politicamente incorreto. Mas divertido, ao menos para os moradores de Tel Aviv.

Em Perdizes novamente. A rua era uma graça de nome Itobi – alguns dizem que significa rio verde na língua tupi. A casa da Itobi era uma belezinha arquitetônica. Meu escritório era na varanda superior fechada por vidros. Foi lá que ocorreu algo incrível. Bem na frente da minha visão havia uma árvore grande. Ela me impedia de ver a Cardoso de Almeida. Enquanto eu trabalhava intensamente nas revistas Maria, Maria do então Unifem, desejava que a árvore não existisse para que o trânsito da Cardoso me divertisse. Mas ninguém derruba uma árvore, em São Paulo é crime. Aí uma tarde, escutei um estrondo que fez as janelas de vidro balançarem. Olhei e não tinha mais árvore. Um caminhão bateu e derrubou-a. Enfim, meus olhos passaram a se deliciar com a Cardoso de Almeida.

A próxima casa foi no Pacaembu na rua Camargo Aranha. Imensa como são todas as casas do bairro. Tinha jardim, quintal, 4 quatros, inacreditáveis 6 banheiros, 2 edículas. Meu escritório ficava em uma delas. A vista era estilo 2001 – uma odisseia no espaço. Urbano, no caso. Como o terreno era muito no alto, dava para ver outras casas do bairro e ao fundo os espigões de Higienópolis. Um sonho que terminou com uma invasão de ratos. Tentamos tudo para erradicá-los. Ratoeiras convencionais, iscas camufladas, rezas fortes. Em vão. As ratazanas venceram e nos expulsaram do Pacaembu.

Vila Madalena, rua Caraça. Casa de arquiteto. Parecia um castelinho. Cheio dos detalhes. Janelinhas transadas, tijolinhos aparentes. Tinha até um vitral. O quintal fazia você pensar que estava no interior. Bananeira, limoeiro, mangueira. Só que havia um defeito fundamental. A casa era escura. De verdade. Você tinha que acender as luzes para ler a Folha de S. Paulo pela manhã. A Caraça inaugurou a minha vida na Madalena que, depois de Higienópolis, é o meu segundo bairro de predileção. Da Caraça pulei para onde estou: rua Sagarana.

A Sagarana, além do charmoso nome homenageando o livro do Guimarães Rosa, é um enclave na Vila. Difícil explicar como chegar nela. Mas uma vez que se chega todos gostam. Costumo defini-lá como uma rua cercada por duas boas padarias: a Pioneira e a Letícia. A casa em que moro teve dois momentos, antes e depois da reforma. Antes era uma casa com muitas paredes e pedras na fachada e significativas goteiras. Quando começou a quebradeira geral fui morar na Vila Beatriz – espécie de infância da Vila Madalena.

Provisoriamente morei na rua Lemos Conde. Uma descidinha para a Arquiteto Jaime Fonseca Rodrigues. Nela, tem uma igreja, a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, bastante frequentada pela terceira idade do bairro. A casa era interessante, ladeada por prédios altos, mas de maneira incrível eles não roubavam a luz do sol. Foi uma casa improvisada, bem bagunçada, na espera do fim da reforma da Sagarana. De qualquer forma quando passo por ela, fico triste. Pois na casa da Lemos Conde recebi o pior telefonema da minha vida avisando da morte do meu pai. Foi também nessa casa que o meu saudoso cachorro, Chico, ficou cego. Um dia reparei que ele não conseguia descer a escada.

Agora moro na casa reformada da Sagarana. Ela é bem bonita com as paredes pintadas de branco e sem muitas paredes. Meu escritório é delicioso. O sol faz a festa e todas as tomadas são modernas. Aposentei de uma vez por todas extensões e adaptadores. Tremendo avanço. Foi aqui, faz quase 1 ano, que tive a ideia de criar meu site Fernanda Pompeu Digital. O projeto surgiu logo depois de um momento de depressão. Me perguntava: O que fazer? O que fazer? Então uma voz feminina e misteriosa respondeu: Faça um site! Me salvou. Por enquanto.

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