Morador da Maré relata o clima após ocupação – Por: Francisco Marcelo da Silva

Francisco Marcelo da Silva, 40, doutorando em Educação pela UFF e morador da Vila do João, na Maré, escreve artigo para o Favela 247 onde conta casos de violência entre facções rivais e diz que a polícia ainda não está presente, deixando os moradores com medo. Depois de apontar suas críticas às UPPs e a ocupação, Marcelo afirma: “Se sairmos às ruas inquirindo as pessoas sobre a permanência ou não da polícia em nossas favelas, afirmo categoricamente que a resposta será sim. Sim, porque para os favelados o que resta é sempre o ‘menos pior’, porque não há esperança no ideal, no justo, no direito. E hoje, o ‘menos pior’ é a UPP”.

Por uma Maré de Direitos

Na madrugada do último domingo presenciamos o grande show que se tornou a “ocupação” do braço armado do Estado aos territórios secularmente marginalizados pelo poder público. Segundo a Secretaria de Segurança, foi utilizado um grande aparato bélico e enorme contingente de policiais e militares numa ação que teve tempo recorde na ocupação: 15 minutos. Levando em conta a geomorfologia da Maré e a presença de grupos rivais distintos – milicianos e duas facções inimigas –, a consolidação desses grupos armados nos territórios que ocupam e uma população maior que 130.000 pessoas, fica difícil não reconhecer a eficiência do plano de ocupação incurso, assim como reconhecer que ocupar a favela nunca foi obstáculo para a polícia.

A receptividade positiva dos moradores à presença da polícia, mesmo sendo pela forma violenta como se deu, e mesmo cientes dos problemas que vêm ocorrendo em outros territórios ocupados pela UPP, é sintomática no sentindo de expor um grito “silencioso” de socorro, de liberdade, sufocado há décadas. Romperam com a tirania do tráfico, encararam um de seus maiores algozes (a polícia), sob pena de sofrerem retaliações pelos remanescentes do tráfico, na esperança de agora sim acessarem algo que só conheciam nos contos de fadas das redes televisivas, faladas e escritas: a cidadania plena.

Pouco importa os passeios à cavalos, o direito a hastear bandeiras em mastros improvisados, os holofotes e lentes das câmeras. Interessa de fato o direito de acessar a sua cidadania plena, o direito de ter direito, o experimento de uma vida nova. Uma vida sem a brevidade do presenteísmo e o pessimismo no futuro. Mas o que se percebe nos dias que seguem após “ocupação” soa como o prenúncio de dias ainda mais difíceis. Se antes tínhamos que dividir o território com um grupo armado totalitário, agora estamos obrigados a dividí-lo com mais dois: outra facção criminosa e a polícia. E logo mais, com o exército.

Não importa a maquiagem que se tenta fazer com a presença de veículos de empresas de manutenção pública, a Maré sempre teve acesso a esses serviços, mesmo que precariamente. Não é isso que o povo mareense almeja. Ele almeja experimentar em sua vida cotidiana o que vem a ser uma democracia. Democracia essa que ele quando teve acesso foi sempre em pequenas migalhas ou de forma esquartejada.

Na noite de anteontem, por volta das 23h, integrantes de uma antiga facção, esses sim seguros da eficiência das UPPs, resolveram verificar de perto os efeitos da “ocupação” na Vila do João, Pinheiros e Esperança. Passearam, “visitaram” antigos desafetos, espalharam o medo, o terror e depois simplesmente foram embora. A polícia onde estava? Não sabemos. Mas sabemos que na Vila do João ela não está. Poucas vezes experimentamos uma sensação de insegurança como essa. Comerciantes temem ser assaltados, os mais jovens temem serem alvos da vingança de integrantes de facções rivais como ocorreu domingo no Conjunto Nova Maré, na Baixa do Sapateiro. Tememos que nossas casas sejam furtadas, tememos que o terror se instaure novamente, mas dessa vez, sem face, sem identidade.

O que percebemos é que toda essa operação não passa de um grande espetáculo midiático com fins econômicos e eleitoreiros. A “ocupação” da Maré representa o fechamento de um perímetro urbano muito propício a entrada do capital imobiliário, industrial e comercial. Ou seja, o Estado não está preocupado em garantir a mais de 130 mil pessoas o seu direito de ter direito. O fato de termos tido uma postura passiva diante das diversas intervenções violentas de controle territorial que acabaram por afetar diretamente nosso desenvolvimento, também acabou por apregoar nossa perda de esperança no futuro. Por isso, a “ocupação” da Maré não será uma possibilidade de emancipação social para as pessoas em nosso território.

Mesmo assim, se sairmos às ruas inquirindo as pessoas sobre a permanência ou não da polícia em nossas favelas, afirmo categoricamente que a resposta será sim. Sim, porque para os favelados o que resta é sempre o “menos pior”, porque não há esperança no ideal, no justo, no direito. E hoje, o “menos pior” é a UPP. O Estado não abandonou a Maré por culpa do tráfico. O tráfico apenas foi o álibi. Por uma Maré de direitos, por uma Maré repleta de plena cidadania.

*Francisco Marcelo da Silva, 40, é geógrafo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre e doutorando em Educação pela UFF e morador da Vila do João, uma das 16 favelas da Maré.

Fonte: Brasil 247

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