Desde a madrugada deste domingo (30), a incompetência e o descaso do poder público diante das previsíveis tempestades de verão deixaram um rastro de mais de 20 mortes, entre elas a de um bebê de apenas três meses. O número, infelizmente, vai crescer.
A maioria morreu na mais rica região metropolitana do país, em municípios como Embu das Artes, Francisco Morato, Franco da Rocha e Itapevi. Morrer em um deslizamento de terra em uma grande cidade, em pleno século 21, já é revoltante. Por afogamento, após uma chuva, beira o inacreditável.
Não é possível aceitar a justificativa padrão do “choveu mais do que o previsto, então não dava para fazer nada”. Muitos chamam equivocadamente de “desastres naturais” as mortes causadas por inundações, deslizamentos, entre outros eventos. Mas não há nada de natural nisso, pois é possível prever, reduzir e evitar o sofrimento causado.
Primeiro, ninguém mora em lugar de risco porque quer. Ao longo do tempo, a especulação imobiliária, com a anuência do poder público, foi expulsando os mais pobres para encostas de morros e várzeas de rios, locais que foram desmatados e fragilizados. E, por lá, os pobres morrem quando a falta de planejamento e de efetivação de direitos desaba sobre eles.
Providências incluem não apenas um sistema de alerta decente, para fazer circular informação que salva vidas dias ou semanas antes de um fenômeno natural – o que já existe em muitos países. Mas também a execução de políticas decentes de moradia, saneamento, contenção de encostas, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo, ou seja, ações em prol de habitação decente.
Se esses processos não são implantados é também por irresponsabilidade ou incompetência de gestores dos níveis federal, estadual e municipal. Desse ponto de vista, o que é chamado de “desastre natural” deveria ser tratado como descaso para fins de responsabilização judicial.
Ou, ao menos, eleitoral. Se as pessoas gastassem mais tempo compartilhando que o governo Bolsonaro reduziu em 75% o orçamento de prevenção a desastres do Ministério do Desenvolvimento Regional, de R$ 714 milhões, em 2020, para R$ 171 milhões, em 2021, mostrando que isso ajudou a aumentar o caos na Bahia, em Minas Gerais, em São Paulo, do que se indignando porque um presidente porco espalhou farofa ao comer frango, a política seria diferente.
Na falta de políticas decentes de moradia, sobrevoos de helicóptero
Claro que o Brasil tem ignorado em seus planejamentos os estudos e relatórios que mostram que as mudanças climáticas já afetaram de forma definitiva nosso regime pluviométrico, tornando obsoleto o histórico de chuvas de décadas. E que governos federal, estaduais ou municipais usam o argumento de que estamos em um momento atípico para justificar um cataclisma envolvendo água, apenas evidenciando que não leva em conta, em seu planejamento, que o clima já mudou.
Mas nos casos das encostas e várzeas paulistas, nem é preciso que venha um megaevento atípico, basta uma chuva mais forte para cidades derreterem.
Não precisamos de governantes otimistas, que acreditam na possibilidade de chover menos, ou de administradores religiosos, que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para Deus. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a meteorologia. Falhas neste caso custam vidas e um “foi mal, aí, não tinha como antecipar” não resolve.
Em São Paulo, aliás, não se morre pelas chuvas no verão ou pelo frio no inverno, mas pelas mãos de especulação imobiliária. O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis trancados por portas de tijolos e terrenos vazios, que hospedam ratos e baratas, pudessem ser desapropriados e destinados a quem precisa com parcelas que possam ser pagas e juros abaixo do mercado.
Daí, quando se discute a necessidade de radicalizar os programas de moradia popular, alguém grita no fundo de sua ignorância: “Tá com dó? Leva pra casa!” Não é levar o povo para a casa, meu caro terraplanista social. Mas fazer com que o poder público cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma. E União, Estado e município têm responsabilidade nisso.
Mas sabe o artigo sexto da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então, é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.
Os mais pobres certamente trocariam os sobrevoos de helicóptero feitos por políticos após as tragédias pela implementação de uma política decente de moradia ao longo do ano.