MPF e pesquisadora apontam as dimensões do racismo à brasileira

Vídeo com a íntegra do seminário, que trouxe experiência de combate ao racismo estrutural, está disponível na TVMPF

Do MPF

#pracegover: Expositores do seminário sobre racismo. (Foto: Ascom/MPF na 3ª Região)

 

Jovens negros, entre 12 e 18 anos, apresentam probabilidade três vezes maior de serem mortos em comparação aos brancos da mesma faixa etária. Essa é a face violenta do racismo à brasileira, de negação e de disfarce de sua existência.

“Somos um povo que gostamos de exaltar o lado festivo, mas os dados mostram a face violenta contra os negros, os indígenas, contra a mulher”, afirmou a jornalista e professora Rosane Borges, autora de vários livros, entre os quais “Mídia e Racismo”, ao participar de um seminário no Ministério Público Federal (MPF) na 3ª Região, no dia 13 de setembro. O vídeo com a íntegra do evento já está disponível na TVMPF.

As multidimensões do racismo e a experiência de combatê-lo foram algumas das abordagens do evento que faz parte de uma série de seminários promovidos pelo Núcleo de Apoio Operacional à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (Naop 3ª Região).

O ponto de partida da abordagem de Rosane Borges foi a ênfase de rechaçar racismo como algo episódico: “A luta do movimento negro é dizer que o racismo é estrutural, arraigado num país que ainda vive em seu cotidiano o fantasma dos 320 anos de escravidão”. Dizer que não existe discriminação racial, segundo ela, é manter os privilégios dos brancos.

No Indice de Desenvolvimento Humano – avalia qualidade de vida e desenvolvimento econômico de um país – o Brasil ocupa a 79ª colocação entre 188 países. Quando se trata da população exclusivamente branca, o IDH sobe para 38º lugar. Quando se coloca apenas a população não-branca, o Brasil fica em 114º lugar. “Não dá para pensar em projeto de nação sem colocar a questão racial”, disse Rosana Borges.

Negação do racismo

“É preciso derrubar o mito de que não existe racismo no Brasil”, defendeu a procuradora regional da República Denise Neves Abade, que preside a Comissão de Gênero e Raça do MPF na 3ª Região. Com a criação de um comitê e de comissões em suas unidades, o MPF busca fortalecer práticas que mudem a cultura e mecanismos que reforçam as disparidades de acesso e oportunidades.

 No levantamento de gênero e raça de procuradores (as), não há nenhum negro, que assim tenha se declarado, no quadro de procuradores, o que causou estranheza a Denise Abade.

Para Rosane Borges, essa estranheza é imprescindível para a quebra do que chamou de “racialização”. Entre vários casos, ela contou o caso de um executivo holandês de um banco estrangeiro que se chocou ao encontrar apenas pessoas brancas numa reunião de diretoria no Brasil, onde 54% da população é de pessoas negras. O que pareceu inconcebível para o executivo holandês era “natural” para os diretores brasileiros.

“Está tudo tão racializado que o branco (brasileiro) não consegue se ver como uma categoria racial, são pessoas”, afirma. “O privilegio da cor atribui naturalidade, porque o branco representa o universal humano,” explicou.

Vale do Café

O procurador da República Júlio Araújo Junior trouxe do Vale do Café, a 120 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, o relato de uma iniciativa construída pelo MPF em conjunto com a comunidade local, para o combate do racismo.

 A região, que viveu o seu auge econômico no ciclo do café, sustentado pelo trabalho escravo, é um pólo turístico formado por 15 cidades, entre as quais Vassouras, onde fica a Fazenda Santa Eufrária. Lá, onde se oferecia o “turismo de experiência”, pessoas negras se vestiam de escravas e serviam quitutes aos turistas, enquanto a proprietária se vestia de sinhá para uma encenação da época da escravidão.

Depois de gestões com a comunidade, a proprietária da fazenda e o poder público, o MPF celebrou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Fazenda Santa Eufrásia. Pelo acordo, não haveria mais encenação ou a utilização de vestimentas por pessoas negras ou brancas que as caracterizem como “mucamas”.

Na fazenda foram instaladas placas, uma explicando a história do local e a outra com o nome dos 162 pessoas escravizadas em 1880 na fazenda, resgatando o outro lado da história nunca contada até então aos turistas. “Enfrentamos o racismo como uma questão estrutural, foi uma forma de provocar o poder público e buscar desnaturalizar algo que é tido como natural”, afirmou o Júlio Araújo.

Alteridade

O combate ao racismo não é uma luta restrita ao movimento negro, defendeu Rosane Borges: “Isso significa dizer que pra gente pensar o que é outro a gente tem que ver no outro a humanidade que nos constitui. E isso diz respeito à responsabilidade. Não é apenas aquela operação de a gente se colocar no lugar do outro. Eu não quero que nenhum branco se coloque no meu lugar. Eu não vou me colocar no lugar de uma pessoa trans (gênero). Mas eu tenho que ver na pessoa trans a humanidade que me constitui. É esse digamos o grande desafio da alteridade… ver no outro a nossa humanidade. E quando a gente vir isso, a gente vai do nosso lugar confortável, do patrimônio da cor de privilegiado, a gente vai sim tomar partido pelo outro não só apenas uma questão de bondade. Porque o que está em jogo aí é também minha humanidade”.

Facetas do racismo

Coordenador do Naop na 3ª Região, o procurador regional da República Paulo Thadeu Gomes da Silva, destacou as diversas facetas da discriminação racial, inclusive o componente social.

Ele destacou o voto do ministro Luís Roberto Barroso na ação de declaração de constitucionalidade em relação à instituição das cotas de raças no serviço público, no qual ele reconhece que a pobreza suportada por negros não é a mesma pobreza suportada por brancos.

No voto, o ministro diz: “O acesso desigual aos recursos econômicos por parte da população afrodescendente não está limitado ao aspecto sócio-econômico, possuindo, ainda, um forte componente racial. Conforme anotou Nancy Fraser, “a ‘raça’ organiza divisões estruturais entre empregos remunerados subalternos e não-subalternos, por um lado, e entre força de trabalho explorável e ‘supérflua’, por outro”, de modo que “a estrutura econômica gera formas racialmente específicas de má distribuição”. É por isso que pretos e pardos ainda encontram grande dificuldade para assumir as posições sociais, econômicas e políticas mais elevadas e relevantes no país: a raça representa um teto de vidro para a sua ascensão na pirâmide social.”

 

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