Mulher negra universitaria

Antes de ingressar na universidade eu já tinha consciência do que estaria por vir, ainda mais por querer ingressar no ensino superior público. Estudei em um curso pré-universitário comunitário na periferia de São Paulo (e hoje ainda faço parte deste movimento social) e sempre em escola pública, aliás, na escola pública já diziam que a gente jamais conseguiria estudar numa boa instituição e poucos eram os professores que nos incentivavam. Eu sabia qual era o perfil dos estudantes de instituições superiores públicas, e por ser moradora de periferia e negra, certamente estava bem longe do perfil de quem ocupa essas vagas. Não é invenção minha o fato de que @s negr@s são minoria dentro do ensino superior, e as ações afirmativas, como as cotas, viram “piada” dentro do espaço universitário, visto que a maioria lá dentro (incluindo alunos e alguns professores) ainda acredita na chamada “meritocracia” e no famoso “eu estudei, ta na hora dos negros pararem de se fazer de coitado”. Os resquícios de uma sociedade escravocrata estão por todos os cantos, desde a questão de classe até a educação, afinal, é só olhar para uma sala de aula (principalmente a dos cursos mais concorridos) e contar quantos negros está ali ocupando alguma vaga. Para quem acha que estamos nos fazendo de “coitados”, basta olhar para os números, ou simplesmente para a realidade além do facebook e perceber quais são os espaços ocupados pela população negra na sociedade.

Luma Oliveira

Acredito que existe uma resistência muito grande por parte do meio universitário, por sua vez, elitista e majoritariamente branco, em discutir a questão racial. Não é a toa que os debates acerca da questão d@ negr@ ficam quase vazios e muitos professores desmerecem toda e qualquer articulação que tente fomentar a discussão: seja dentro ou fora da sala de aula. Falo aqui de acordo com os relatos de companheir@s de luta espalhados por diversas universidades (USP, Unicamp, Unifesp, UNESP, etc), falo aqui de acordo com a experiência que estou tendo no meio, mulher negra e estudante de uma instituição pública, de um ambiente que grita “aqui não é o seu lugar”, de um curso onde 90% da sala é branca, lugar onde volta e meia, você ouve e lê “piadinhas” em relação às cotas quando ela entra em debate, porque para conversar seriamente a respeito do assunto, é muito difícil. Porque os que são contrários às cotas muitas vezes dizem que a medida é algo que reproduz o preconceito, quando na verdade a política de inclusão é provisória, afinal queremos as cotas enquanto elas forem necessárias, para que @s negr@s ingressem no ensino superior público, sem contar as cotas econômicas que colaboram para que a população de baixa renda tenha acesso ao ensino superior público. Até que todos tenham acesso igualitário ao ensino superior público que deveria ser um direito à todos e não um privilégio da elite, defenderemos e lutaremos para que ações afirmativas sejam adotadas por todas as instituições públicas.

A grande barreira chamada “vestibular” foi superada. Estudei dois anos e no primeiro não deu certo, já no segundo consegui passar na prova. Já sabia de antemão que: ou eu entrava numa universidade pública, ou então deveria conseguir uma bolsa, já que minha família não teria condições de custear os meus estudos. Acabei conseguindo ingressar numa universidade federal, e logo no dia da matrícula já me dei conta daquilo que desde o berço já começava a ter consciência: de quem era maioria lá dentro e logo comecei a sentir na pele o que era ser mulher e negra dentro daquele lugar. Olhava para todos os lados e não via ninguém da minha cor, uma semana depois entrei na sala de aula e podia contar nos dedos os alunos negros, e até o momento não tive uma aula sequer com um professor negro. Será por que negr@s não viram doutor@s? Garanto que não, eles existem: professores universitários negros estão no mercado, porém ainda fazem parte de uma minoria. A propósito, até agora andando pelo campus só conheci um professor negro que dá aula em outro curso.

Ser mulher dentro do espaço universitário é outra questão que jamais posso esquecer de mencionar no presente texto, pois eu curso Letras e mais da maioria da sala é formada por mulheres, e infelizmente, alguns professores acham engraçado aproveitar o ambiente e utilizarem de piadas e argumentos machistas para com as alunas, e arrancam risadas, o pior é que ainda me sinto sozinha, na tentativa de discutir e questionar o posicionamento machista dos professores. É muito difícil ouvir deboches de colegas, em redes sociais, pelo campus e gente com imagens de materiais de castigar escravos, dizendo que se você é negro e não reconhece aquilo, não teve infância, você vai reclamar a pessoa diz que é só uma “piada”. Confesso: já quis abandonar muitas vezes o curso e é muito difícil bater de frente com os professores dentro de sala de aula, ainda mais quando se está praticamente sozinha, mas ainda assim sempre que vejo alguma oportunidade de luta, não desisto (trabalhos, artigos abordando discurso machista e racista) – embora esteja muito cansada.

Acredito que na minha área é possível fazer pesquisas incríveis, inclusive utilizando recorte de classe, gênero e raça; não é a toa que admiro várixs pessoas que já o fazem, e tenho esperanças ainda em seguir firme neste universo, graças a pesquisas interessantes que abordam esses assuntos, mas não posso negar que são missões muito difíceis, se levarmos em consideração a limitação dada a nossa área e dificuldade em encontrar pessoas que concordem ou tenham interesse por este assunto, sobretudo os doutores. Puxei este assunto porque falo por experiência própria. Faz um tempo que estou com vários projetos de estudar a questão da mulher negra na literatura e já rodei a universidade procurando alguém que pudesse me orientar ou ao menos se interessar pela pesquisa e recebi vários “nãos”, alguns deboches e gente dizendo que esse tipo de pesquisa não é interessante ou viável, ou que esse é um assunto que não contribuiria com a minha área, entre outras indelicadezas que só eu sei. Mas para quem pensa que desisti, eu informo que não, porque provavelmente a pesquisa tem tudo para sair e vejo interesse Brasil a fora em estudar a questão de gênero e raça na literatura. Um dos últimos trabalhos foi analisar o discurso machista e racista sob a mulher negra, e o mesmo foi ridicularizado. Contei esse caso, para que vocês observassem o que é falar na questão do negro no espaço universitário, inclusive se o interesse for em pesquisar e querer dar um grito e resistir à desigualdade, porque do meu ponto de vista, querer abordar determinados assuntos em áreas que pouco se interessam por ele é também militância, é um ato revolucionário.

Levando em consideração as experiências coletivas e particulares, me pergunto até hoje se foi mais difícil a trajetória para superar a barreira chamada vestibular, ou a de matar um leão por dia após o ingresso, enfrentando racismo, machismo e preconceito de classe. Sou universitária, tenho planos para o futuro após a graduação que não serão interrompidos ao término do curso, e vão além de um mero diploma, afinal enxergo a educação muito além de certificados e a mercadoria que têm se tornado. Sei que estou num ambiente em que histórica e socialmente gritam todos os dias “aqui não é espaço pra gente negr@”, onde os olhares de reprovação ainda se fazem presentes, vindo de todos os lados tentando barrar a presença d@ negr@ que tanto incomoda aquele que discursa a favor da meritocracia e de um ensino superior público cada vez mais restrito, transformando o ambiente no que a sociedade já vomita todos os dias sobre a população negra.

antropóloga, educadora e feminista mineira, Lélia Gonzales

Hoje sou universitária, mas antes disso sou mulher negra! Apesar de muitas vezes fraquejar e querer desistir de tudo, uma força maior me faz persistir e querer revolucionar junto xs companheirxs, aquele espaço, assim como fazemos aqui fora, nas nossas lutas diárias. Afinal, nossa militância não está só em espaço X ou Y: ela está presente no cotidiano, quando não nos calamos, quando resistimos, batemos o pé e lutamos juntxs para ocupar os espaços. Quero um dia poder escrever sobre a universidade que se pintou de negro, favelado, gay, trabalhador, travesti, transexual, mulher… Quero que o ensino superior público seja um direito de todos, e não de pessoas selecionadas socialmente de acordo com sua classe e sua cor, não quero continuar vendo @s negr@s dentro da universidade somente se for para fazerem a limpeza, ficarem olhando da porta, e uma minoria nas salas a estudar. Já nasci cansada de saber que pelo meu gênero e cor a sociedade machista e racista automaticamente me condenou. Poderia ter desistido de tudo, mas acredito que só a luta possibilitará as mudanças, para tanto é necessário que ocupemos todos os espaços que não nos querem, lugares estes que abominam a presença de negros como estudantes, professores ou pesquisadores. Acredito em liberdade, oportunidade e educação, e falando em educação, encerro o texto com uma frase de uma mulher, que quando pequena eu já havia visto uma foto, mas não sabia direito quem era. Quando fui pesquisar, descobri que seu nome é Lélia: negra, feminista e que combatia em sala de aula a opressão. E que uma vez falou uma frase que até utilizei, salvas as modificações para dar nome a este texto, onde Lélia diz: “Feminista sim, mas negra!”, garanto que essa frase mudou a minha vida e abriu meus olhos para a reflexão acerca das lutas e da minha militância. Através disso e de outros fatores descobri que uma das minhas armas de luta é a educação, por acreditar no seu papel revolucionário e como mais uma arma de lutar contra a desigualdade. Mais uma vez citando Lélia, deixo para reflexão:

 

“O importante é procurar estar atento aos processos que estão ocorrendo dentro dessa sociedade, não só em relação ao negro, ou em relação à mulher. Você tem que estar atento a esse processo global e atuar no interior dele para poder efetivamente desenvolver estratégias de luta. Só na prática é que se vai percebendo e construindo a identidade, porque o que está colocado em questão, também, é justamente uma identidade a ser construída, reconstruída, desconstruída, num processo dialético realmente muito rico.” – Lélia Gonzalez em entrevista concedida à revista SEAF


Luma Oliveira escreve no Entre Luma e Frida/ sobre feminismo, política, militância na periferia, educação popular, poesia, sexo, literatura e revolução.

 

Fonte: Blogueiras Negras

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