Mulheres, comércio e outras profissões: Campinas, século XIX

FONTEIHGG-Campinas, por Laura Candian Fraccaro e Taina Aparecida Silva Santos
Imagem retirada do site IHGG-Campinas

Women of color in the 19th century Campinas (SP, Brazil): work, urbanization and race.

Laura Candian Fraccaro – historiadora, doutora em História Social pela Unicamp e Taina Aparecida Silva Santos – historiadora, mestranda em História Social pela Unicamp.

Abstract
This text focuses on the experiences of women of colour who lived in the township of
Campinas (SP, Brazil) during the 19th century when an urbanization process took place. Township’s authorities targeted these women’s activities, bodies and behaviors. Distinctions based on race changed the lives of those women. Authorities considered them as potential criminals. The white population started to require white women to do the task. once women of colour were the majority.

A presença das mulheres nos mundos do trabalho é um fato histórico. Mesmo que as narrativas hegemônicas tenham consolidado a ideia de que o acesso delas aos espaços públicos foi tardio, isso não foi uma realidade especialmente para as mulheres negras e pobres. Em diferentes momentos da História e regiões do mundo, as trajetórias desses grupos são atravessadas pela experiência do trabalho forçado e da venda de mão-de-obra.

No continente americano, assim como nas demais localidades do mundo atlântico, a escravidão foi uma questão central para definir as relações e as condições de trabalho em que as mulheres estiveram inseridas nos últimos quinhentos anos, sejam eles anteriores ou posteriores à abolição. Esse sistema impactou os entendimentos sobre mulheridade, trabalho feminino, gênero, sexualidade, entre outras questões (HOOKS, 2019). E, além disso, cristalizou o nossos olhares em relação à complexidade da presença dessa população no mundo do trabalho.

Na plantation escravista, por exemplo, as mulheres negras representavam um número menor em relação aos homens (EISENBERG, 1989). Contudo, elas ocuparam papéis centrais nas redes constituídas a partir do trabalho e do cotidiano familiar. Foi sobre a escravizada que, no passado, se construiu a possibilidade da família dentro do cativeiro. E a partir das articulações protagonizadas por essas mulheres, muita gente conquistou a alforria por meio da compra. Elas foram bem sucedidas no acúmulo de pecúlio (valor necessário para comprar suas alforrias), pelo fato de dominarem o comércio urbano. A partir da mobilização desses recursos, essas trabalhadoras conseguiram acessar em maior número as cartas de liberdade, de forma que passaram a representar um contingente expressivo da população livre e liberta. Em 1872, elas correspondiam, apenas, a 36% dos escravizados na região de Campinas, de acordo com as informações do censo. No entanto, entre os livres e negros elas contabilizam 47%.

Estudos recentes revelam que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a presença das mulheres negras nos trabalhos de rua era bastante comum. Fossem escravizadas, libertas ou livres, elas se ocupavam com a venda de alimentos e amuletos (práticas centenárias que perduram até os dias de hoje no ofício das Baianas do Acarajé, por exemplo); com a lavagem, a costura e o engomar das roupas; com o trabalho de quitandas, entre outras funções ligadas ao cuidado e à prestação de serviços. Nas ruas, como vendedoras, essas mulheres eram responsáveis por grande parte do abastecimento das cidades, comercializando verduras, hortaliças e merendas tais quais bolos e frutas. Outras tinham botequins, vendas de porta adentro e algumas, inclusive, conseguiam arcar com os altos impostos da municipalidade.

Infelizmente, esse tipo de narrativa sobre as experiências das mulheres negras ainda não é acessado com facilidade, mesmo que exista uma lei que determine a obrigatoriedade do ensino de conteúdos sobre a história dos africanos (as) e dos negros (as) no Brasil. Isso acontece, pois o imaginário em relação às profissões exercidas por esse grupo se consolidou a partir de uma ideia racista de que a escravidão doméstica e a servidão eram lugares exclusivos para mulheres de pele escura no passado. Ideia que, no presente, naturaliza a presença delas no trabalho de cuidados. Interpretação que desconsidera uma série de elementos fundamentais para o entendimento das disputas que perpassaram as relações sociais nos séculos passados.

A presença dessas mulheres nas ruas dos centros urbanos era tão intensa que foi alvo de perseguição dos gestores públicos. Ao longo do século XIX e desde o primeiro código de posturas em 1829, que funcionava como uma regulação do andamento da vila, há tentativas de controle sobre a população pobre de cor e cativa. No regulamento do Mercado de 1860, a proibição dos ajuntamentos passou a incluir também a população livre. O artigo 14º proibia o ajuntamento de pessoas inertes que não estejam comprando ou vendendo e que possam incomodar o expediente do negócio de quem compra e vende. (MARIANO, 1970). No Código de Posturas de 1880, o conceito alargava-se ainda mais, ficando proibido o ajuntamento de escravos quando o número passar de quatro, ou de pessoas que fizessem vozerio e tumulto.

Ao regular o comércio, criar espaços, horários específicos e recrudescer a fiscalização, a legislação municipal tornava instável a permanência do comércio de rua. Campinas ficava cada vez mais hostil à presença de mulheres e homens pobres e negros. Em 1833, foi taxada a venda de aves, hortaliças e verduras, o que afetou diretamente a permanência de vendedoras de tabuleiro. Em 1856, esse tipo de comércio não pôde mais ocorrer livremente pela vila, pois passou a ser restrito a área dos largos.

A criação de um mercado municipal afetou diretamente a participação dessas mulheres. O que nos parece em um primeiro momento resultado do crescimento econômico e urbano da vila, significaria um obstáculo para as mulheres negras. Para poder comerciar dentro do mercado, era preciso concorrer com outros comerciantes pelos espaços e participar de leilões. Essas medidas reguladoras afetaram diretamente a presença das mulheres no comércio. Em 1829, elas chegavam a ser um quarto das pagantes de impostos sobre a venda, mas acabaram por não ocupar nenhum lugar nas mesas do mercado.

Em 1872, com a criação do Mercado de Hortaliças, os comércios considerados quitandas, dominados por mulheres negras, passaram a ser regulados de modo semelhante ao mercado da vila. A atividade que antes era feita de modo livre, em tabuleiros ou em vendas volantes pelas ruas da cidade e sem horário determinado passou a acontecer, obrigatoriamente, no Mercado de Hortaliças e arredores.

Com o processo de urbanização de Campinas, muitas lojas e estabelecimentos de porta adentro, como armazéns, passaram a fazer parte do comércio da vila e as vendedoras e vendedores que antes abasteciam os moradores com suas vendas volantes e tabuleiros passaram a ser alvo de críticas e perseguições. A própria modernização da cidade, de acordo com Amaral Lapa, fez com que a aristocracia exigisse serviços de melhor qualidade e com maior refinamento, levando as atividades informais à marginalidade (LAPA, 2008).

Os comerciantes e contribuintes de estabelecimentos de portas adentro viam as vendeiras e as negras de tabuleiro como rivais desleais, e cobravam das autoridades um aumento da fiscalização. Na Gazeta de Campinas, um comerciante questiona o Senhor Fiscal se uma quitanda tem licença para vender gêneros de venda, porque na Rua do Comércio há uma prejudicando aqueles que pagavam licença de venda.

Havia uma constante cobrança pela fiscalização e penalidades para os donos de vendas volantes e quitandas. A presença de pessoas pobres transitando livremente pelas ruas buscando consumidores incomodava as classes mais altas, que viam a venda de gêneros pelas ruas como um perigo para a cidade. Na mesma Gazeta, um pai reclamava da dificuldade de resistir às delícias verdes, frescas, que eram vendidas nas ruas, mas alertava que poucos sabiam sobre o mal causado por elas. Vendo seu filho revirar-se de cólicas por ter comido uma merenda, ele sentia-se impotente, mas avisava todos sobre os perigos que andam livremente nos tabuleiros e, ainda, pediu às autoridades que coibissem esse tipo de comércio.

Além de criarem estratégias para manter o sustento que vinha sendo impactado pelas mudanças na legislação, pelo aumento das fiscalizações e das penalidades, essas mulheres lidavam diariamente com a objetificação de seus corpos. As lavadeiras, por exemplo, tinham a aparência e o comportamento avaliados enquanto faziam serviços nos chafarizes da vila. De acordo com Valter Martins, o vereador Gumbleton Daunt propôs um projeto na Câmara, em 1863, para regular o comportamento dessas trabalhadoras que eram vistas como imorais (MARTINS, 2010). O autor ainda relata outro incidente envolvendo mulheres negras quitandeiras que, ao ficarem ao redor da cadeia, promoviam distração aos guardas e faziam daquele espaço um palco de imoralidade. Reclamações nos jornais e projetos para a Vila mostram a ideia de que os corpos negros deveriam ser normatizados, da mesma maneira que a municipalidade normatizava os espaços públicos.

O chafariz que há próximo ao mercado desta cidade, vê em torno de si quotidianamente uma aglomeração de escravos e pessoas de ínfimos costumes a fazerem algazarra, e, muitas vezes, sérios desaguisados, com prejuízo de todos e máximo da boa moral. Seria conveniente que se postasse ahí um guarda incumbido de policiar aquele theatro da vadiação; ou, ao menos, que uma patrulha, de quando em quando, fosse passear aqueles sítios. (Nós, do jornal) concordamos com esta excelente lembrança do nosso comunicante.(A Gazeta de Campinas, 22/09/1870)

A movimentação e o comportamento dessas mulheres e homens deveriam ser controlados, pois estavam constantemente sob suspeita. Eram vistos como vagabundos, imorais e criminosos. Seus produtos eram vistos como potenciais focos de doenças e seus comportamentos como passíveis de corromper a Vila. O negro, mesmo na condição de livre, representava perigo e ameaça à ordem.

É nesse contexto que os corpos das mulheres trabalhadoras e negras foram patologizados pela medicina corrente. Processo que resultou na predileção pelas trabalhadoras brancas e estrangeiras em algumas ocupações urbanas, principalmente, aquelas ligadas ao trabalho de casa e de cuidados. Esse processo ficou cada vez mais explícito ao longo da disseminação das epidemias de febre amarela, varíola e cólera, pois os médicos incentivavam cada vez mais que os bebês fossem amamentados pelas próprias mães ao invés das conhecidas amas de leite negras (MACHADO, 2012). Elas passaram a ser vistas como focos de doenças, germes e moléstias. Fossem elas livres ou escravizadas, um dos principais objetivos dessas teses científicas era reforçar as concepções emergentes de maternidade em um contexto de aprofundamento da racialização. Sistema que condicionou a população negra a lugares sociais específicos, colocou a ideia de raça em ação e estabeleceu distinções a partir da cor, por meio de exercícios políticos em contextos de profundas transformações (ALBUQUERQUE, 2010).

Essa conjuntura foi propícia para a disseminação de uma ideia na qual as mulheres de cor eram vistas de forma pejorativa e a mulheridade delas passou a ser desvalorizada. Esse cenário foi oportuno para práticas de preterimento racial em relação às ofertas de vagas de emprego no século XIX. Algo que, infelizmente, perdurou até meados do século XX por meio dos anúncios de jornais. Ao longo de periódicos de importante circulação produzidos nos anos oitocentos, é possível localizar uma série de comunicados sobre oportunidades de trabalho em que é destacada a preferência das trabalhadoras brancas para diversas funções. Esses mecanismos acabaram condicionando a alocação da população negra em posições específicas no mercado de trabalho ao estabelecer e reforçar as distinções raciais.

Gazeta de Campinas, Março de 1887
Gazeta de Campinas, Março de 1887

Nesse contexto de intensas transformações as trabalhadoras negras e pobres foram personagens ativas no mundo do trabalho, em suas mais diferentes e complexas esferas. Elas foram centrais em uma sociedade na qual o racismo se estruturava nas instituições, nas relações de poder e nas práticas culturais. E em que as noções de gênero estavam sendo moldadas de acordo com o desenvolvimento desses processos. Essas mulheres transformaram e foram transformadas por essa realidade. De forma que, a presença delas foi indispensável para o abastecimento do espaço urbano, o desenvolvimento do comércio, da lavoura e a formação da cidade de Campinas no século XIX. Infelizmente, elas ainda são esquecidas por quem conta a História. Sendo assim, esse texto é mais um esforço, entre tantos, para que elas sejam bem lembradas no nosso tempo.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Wlamyra. A vala comum da ‘raça emancipada’: abolição e racialização no Brasil, breve comentário. In: História Social, n° 19, pág. 91-108, 2010.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e o feminismo. Rio de Janeiro: Roa Tempos, 2019
________. “Mulheres trabalhando”. In: HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa Tempos, 2019.
EISENBERG, Peter. Homens Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.
LAPA, Amaral. Os Cantos e os antros: Campinas: 1850-1900. São Paulo: Editora da Usp; Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.
MACHADO, Maria Helena. Entre dois Beneditos: histórias de amas de leite no ocaso da escravidão. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e no pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012. p. 199-213.
MARIANO, Júlio. Campinas de ontem e de ante-ontem: quadros históricos menos conhecidos da cidade-Princesa, que se traçaram tendo como base documentos inéditos do Arquivo da Câmara Municipal de Campinas. Ed Maranata, Campinas, 1970.
MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade: abastecimento e cotidiano em Campinas, 1859-1908. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

Leis citadas:

BRASIL. Lei n. 11.645/2008, de 10 de março de 2008. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-2008-572787-publicacaooriginal-96087-pl.html.

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