Mulheres negras de março a março

De março a março são negadas oportunidades a mulheres negras

Todo dia 8 de março recebemos muitas mensagens de feliz dia da Mulher. Quando explicamos que essa não é uma data lúdica e sim de luta e reflexões, ainda somos taxadas de desmancha prazeres: “custava sorrir e agradecer?” Nessa pergunta, faltou nos dizer: e silenciar… e manter tudo como está. Pois não silencio. Falo cotidianamente contra essas estruturas que tentam nos oprimir e manter os privilégios do patriarcado e da branquitude em dia.

De março a março são negadas oportunidades a mulheres negras porque ainda esperam que a gente ocupe apenas posições de subserviência. Em outras palavras, nos tratam como se não pudéssemos desempenhar funções intelectuais ou de liderança e tivéssemos um perfil engessado para somente servir.

Esses dias li um comentário que me chamou atenção. O comentário dizia que falas sobre situações de racismo não traziam nenhuma surpresa nos dias de hoje. A pessoa contava que já havia decidido de uns tempos pra cá ser antirracista e que, inclusive, é preciso agir urgentemente. Fiquei pensando sobre.

Sabe, relatos de situações de racismo me surpreendem. Mesmo eu sendo uma mulher negra, ou seja, vivenciando situações de racismo desde criança, ainda assim as falas de outras pessoas negras e a maneira como alguns autores descrevem a engrenagem como o racismo e o pacto da branquitude acontecem no cotidiano me surpreende.

Sabe porque me surpreendem?

Porque fico me interrogando: como essas situações ainda se reproduzem?

Como não foi visto ainda que é preciso agir para combater situações tão desumanizantes?

Como algumas pessoas passam a vida toda sem se dar conta de uma desigualdade tão gritante como se fosse normal nos verem majoritariamente em situações de subserviência no mercado de trabalho, por exemplo, uma situação que todos vivenciam e não tem como não ver a desigualdade de posições.

Será que uma vida inteira não se perguntaram o porquê disso? Ou quiseram acreditar que era normal porque era cômodo não pensar sobre seus privilégios e dá trabalho se mexer para agir contra esses absurdos?

A nós, pessoas negras, eram negadas oportunidades e voz nos espaços de decisão, mas e as pessoas brancas que sempre tiveram acesso aos melhores estudos, livros, debates sobre a sociedade e ainda assim não pensaram sobre isso e não agiram contra uma vida inteira?

A mim sempre espanta. Desde sempre não consigo ver a desumanização de alguém e ficar impávida. E assim criei meu filho para sempre pensar em que mundo vive, com quem convive em sociedade e como estão sendo tratadas as pessoas nessa sociedade.

Ter esse olhar que humaniza já teria despertado ações antirracistas há décadas, séculos, mas há pessoas que passam a vida sem nos ver. Somos desumanizados desde que jogaram nossos antepassados aqui.

O racismo nunca deixou de existir, apenas se adaptou a cada época. Então cada vez que ouço um relato de racismo me surpreende que as pessoas brancas ainda tenham a coragem de praticar tantas desumanidades.

É por conta desse olhar que nos desumaniza, que a gente ainda passa por situações de racismo, nossos filhos passarão, nossos pais passaram e nossos netos ainda sentirão essas dores.

Perceba a carga de cada relato de racismo que você ouvir ou ler. Cada relato é sobre oportunidades que nos são tiradas pelas características da nossa pele, cabelo, nariz, enfim por existirmos. Esses relatos são sobre as consequências dessa perversa invisibilização das pessoas negras e de tudo o que vivemos desde que nossos ancestrais foram sequestrados de África e jogados aqui para exploração de nossa força e anulação de nossa condição humana.

Hoje não é na senzala que nos prendem, mas basta ler o Pacto da Branquitude de Cida Bento e outras tantas obras que analisam a sociedade em que vivemos para saber onde ainda nos prendem e de que forma ainda açoitam nossa pele.

Essa situação não começou agora e nem de uns tempos pra cá. Situações de racismo são vivenciadas de maneira escancarada desde sempre. E no entanto, às vezes, leva uma vida para as pessoas brancas pararem para pensar o que acontece conosco há séculos e o que podem fazer para combater?

Por isso o slogan “Vidas Negras Importam”. Não quer dizer que outras vidas não importam. É uma afirmação que tenta construir a narrativa de que nossas vidas  importam, porque cotidianamente a branquitude nos diz que não importamos. É como se o que fazem conosco não estivesse sendo feito com seres humanos.

Se a gente der sorte, um dia vem o estalo que é preciso falar sobre a desumanização e apagamento que tentam fazer conosco. Até lá, via de regra, nas situações de racismo, a vítima se insurge sozinha e ainda tentam taxá-la de exagerada, barraqueira, vitimista ou paranóica.

Quando nos dizem que não tinham pensado antes em tudo isso que a gente passa durante a vida toda, às vezes, a sensação que dá é que a gente não existia para essas pessoas. Por isso, eu sempre me surpreendo com as falas. Me surpreendo, me indigno e me pergunto: como as pessoas brancas “não viram” o racismo antes e que era urgente agir? O racismo não começou a existir de uns tempos para cá. Essa urgência não é de hoje.  Quando cada um de nós que está lendo essa reflexão agora nasceu, essa urgência já existia.


*Cíntia Colares é jornalista, ativista no antirracismo e poeta.

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