Mulheres Negras reivindicam seu lugar na sociedade por manifestações culturais

FONTEFernanda Meneses

A arte tem sido uma poderosa ferramenta de luta e expressão para as mulheres negras. Através de diversas formas artísticas como grafite, poesia, música e dança, elas encontram maneiras de fortalecer suas identidades e manter viva sua ancestralidade. Lunna Montty, dançarina, DJ e modelo, é uma das referências de uma nova geração que descobriu na arte um caminho de liberdade e força para seguir. Baiana, a artista começou em 2018 a fazer mixagens e se lançar no mundo da dança em algumas casas de show em Salvador, e não parou mais por aí. Hoje, aos 23 anos, já acumula uma vasta bagagem e sabe muito bem de onde veio e para onde quer chegar: “Em cada ramo do meu trabalho como artista, eu tenho uma posição muito forte. Para mim, é fundamental fazer isso ecoar, especialmente em um espaço de expressão e, acima de tudo, como um lugar de resistência para minha própria sobrevivência, sendo eu uma travesti negra da periferia.”

Lunna Montty

Criada no bairro do Imbuí, em Salvador, Lunna faz parte do coletivo de dança Afrobapho. Ela foi a primeira travesti negra a protagonizar uma campanha de moda em um shopping da capital baiana, além de ter participado de um editorial da revista Elle Brasil e atuado como DJ responsável e diretora criativa na passagem de Beyoncé pelo Brasil. Em uma realidade onde mulheres trans e travestis são frequentemente marginalizadas, a arte possibilita que figuras como Montty se tornem visíveis e tenham suas vozes ouvidas. A luta de gênero, nesse contexto, transcende a mera busca por aceitação, tornando-se uma forma de resiliência e sobrevivência. Elas criam narrativas contra a opressão e estabelecem um diálogo e uma ponte sobre suas realidades.

“Pra mim, é muito importante falar desses corpos que foram e são marginalizados, por falar, por serem da periferia. Por estar nesse lugar, por estar nessa camada que é onde o sistema nos coloca, e não sobre o que a gente quer realmente falar”, afirmou.

Falar de corpos marginalizados é também falar das ruas e de como esse espaço se tornou acessível para expressão. Muitas vezes, distante de barreiras e elitismos, as ruas desempenham um papel importante na busca por inclusão e resistência. A arte nas ruas, particularmente o grafite, assume um papel crucial nesse processo. “Fazer um trampo na rua não existe em nenhum lugar. Acho que a sensação é única. Nunca vai ser igual a nenhum outro trabalho que eu vou fazer”, afirma Crica Monteiro, grafiteira, designer e ilustradora da zona sul de São Paulo, que encontrou na disciplina de acordar cedo para estudar, vindo de Embu das Artes até o Campo Limpo, novos horizontes no mundo.

Crica Monteiro

Percorrendo caminhos e atravessando barreiras por ser uma mulher negra da periferia de São Paulo, Crica encontrou primeiro na cultura hip-hop e depois no grafite uma maneira de expressar quem ela é. Ao longo de sua caminhada, ela compreendeu que era necessário criar uma identidade visual em sua arte. Nesse processo, percebeu a ausência de representações de pessoas negras como em seu imaginário. Foi a partir daí que começou a trazer para seu trabalho todas as representações da vivência. A rua deixou de ser apenas uma passagem, tornando-se um palco. “O palco da rua é essencial para mim, é minha essência. Posso pintar quadros, posso fazer ilustrações digitais, mas se eu ficar muito tempo sem pintar na rua, eu me sinto vazia. É como se eu não fosse o que eu sou.”

Ressignificar as ruas frequentemente marginalizadas significa transformar esses espaços em lugares onde as artes se encontram, dialogando com a realidade cotidiana e ressignificando todo o espaço urbano. Nas mãos de mulheres, esses lugares viram territórios de resistência e criação.

Seja na dança, no grafite ou nos livros, as histórias se entrelaçam. Camilla Apresentação, escritora, comunicadora e pesquisadora baiana, é uma dessas mulheres que utiliza a literatura para compartilhar conhecimento com outras pessoas. Através do Instagram, Camilla — ou Preta Letrada, como se apresenta nas redes sociais — tem amplificado as vozes de autoras e autores negros. “Eu percebi que no momento em que estava adquirindo conhecimento e vivi uma vida com a intenção de aprender tudo aquilo, se tornou ao mesmo tempo muito inócuo e sem sentido se não passasse para outro. Entendi que o conhecimento ia morrer em mim se eu não o compartilhasse com outra pessoa.”

Camilla Apresentação

A escrita entrou na vida dela quando ainda era criança, principalmente como forma de desabafo. Aos 10 anos, ela descobriu na arte de escrever uma maneira de expressar todos os seus sentimentos reprimidos, além de filtrar suas emoções, especialmente a raiva. Hoje, utiliza a literatura através da oralidade e faz questão de destacar que essa arte transcende as palavras escritas: “As pessoas não entendem muito bem por estarem presas em uma dinâmica de literatura nas bibliotecas. A gente acredita que a literatura são só as linhas escritas e vai muito além disso. Então só estou usando um outro lugar da literatura que é falar além do que está nas linhas escritas.”

Na literatura, seja escrita ou falada, as intervenções artísticas educam, provocam e transformam a sociedade, trazendo consigo toda a herança ancestral das mulheres que abriram caminho para esta geração e as futuras. Ontem foram Tereza, Dandara, Conceição e Lélia; hoje temos Lunna, Crica, Camilla e tantas outras que continuam na luta diária, reivindicando sua presença, seus direitos e desafiando estereótipos em todos os campos.

No dia 25 de julho, celebramos não apenas o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, mas também refletimos sobre o papel essencial das mulheres amefricanas em diversas culturas e sociedades. É uma data para honrar suas conquistas, ressaltar suas lutas e reconhecer sua contribuição inestimável para a história e a identidade de nossos países. Em um paralelo, lembramos do dia 25 de novembro, onde comemoramos o Dia da Baiana de Acarajé, uma data brasileira, destacando não apenas a gastronomia típica da Bahia, mas também a resistência dessas mulheres que, há séculos, transformam ingredientes simples em um patrimônio cultural vivo.

Impossível pensar na Bahia sem lembrar das Baianas de Acarajé. Onde quer que você vá, encontrará uma delas: vestidas de branco, com suas saias rodadas, panos, guias e turbantes na cabeça, ou vestidas com roupas do dia a dia, empregando toda sua força para bater a massa do bolinho de feijão. São essas mulheres, símbolos da Bahia e do Brasil, que há mais de 300 anos carregam nas mãos todo o sabor e a história do principal prato baiano.

A atividade de baiana de acarajé é predominantemente exercida por mulheres. É muito comum encontrar seus tabuleiros nos principais pontos turísticos, praias e até mesmo em pontos de ônibus lotados, onde se formam filas gigantescas de pessoas ansiosas para saborear o acarajé, o abará, o bolinho de estudante e as famosas passarinhas, baço do boi frito no azeite de dendê.

A história das baianas de acarajé teve início há mais de 300 anos, quando mulheres negras escravizadas vendiam a iguaria para conquistar a liberdade. Ao longo da história, as baianas, frequentemente filhas de Iansã, saíam às ruas para vender o acarajé e cumprir suas obrigações nos terreiros. Com o tempo, perceberam que o bolinho poderia sustentar suas famílias, e assim continua até hoje. Apesar de ter raízes religiosas, hoje em dia é vendido por baianas de diversas religiões.

Responsáveis por preservar uma rica herança cultural e religiosa, as baianas de acarajé carregam consigo toda a resistência de mulheres que sustentam suas famílias através desse ofício. Segundo um levantamento da Associação das Baianas de Acarajé (ABAM), Salvador abriga em média 3,5 mil baianas e baianos distribuídos pela cidade — um número que sublinha a importância dessas mulheres para o contexto urbano e estadual.

Rita Santos

Andréia Barbosa, que é baiana “desde novinha”, enfatiza a falta de suporte governamental para a profissão. “É luta ser baiana”, afirma ela, trabalhando junto com sua irmã em um tabuleiro situado em uma das estações mais movimentadas de Salvador. “Ser baiana de acarajé hoje não é fácil porque é muito trabalho e nós não somos valorizadas como deveríamos ser. É trabalhoso, a gente acorda cedo para fazer as coisas boas, ter um azeite bom, de qualidade, porque não pode fritar o acarajé em azeite saturado, mas eu espero que sejamos valorizadas.”

Andréia Barbosa

Entretanto, essa relevância é frequentemente observada apenas através de imagens que circulam pelo mundo. A realidade das baianas de acarajé é árdua e muitas vezes desvalorizada. “Não existem políticas públicas para as baianas de acarajé. Nem na área de saúde e em nada. O Ministério do Trabalho tornou nosso ofício uma profissão em 2018, mas nem os médicos sabem! Quando a gente chega lá falando que quebrou o braço, que é nossa ferramenta de trabalho, eles não reconhecem isso ainda. Se uma baiana quebrou o braço e ela contribui para o INSS, ela tem que ficar encostada”, ressalta a presidente da ABAM, Rita Santos.

Para quem aprecia essa iguaria, é difícil imaginar que a fumaça resultante da queima do azeite de dendê é prejudicial para as próprias baianas que estão constantemente expostas ao vapor emanado dos tachos onde o acarajé é frito. Esse aspecto da profissão, geralmente invisível para a sociedade, revela os desafios significativos enfrentados por essas mulheres diariamente. “Eu venho batendo nessa tecla há mais de cinco anos. Falando da fumaça que está prejudicando a saúde das baianas, não de quem come o acarajé, mas daquelas que ficam ali no tacho fritando, que é quem recebe aquela fumaça que é imperceptível para as pessoas”, explica Rita, destacando a falta de suporte em todo o Brasil para ajudar as baianas.

Com sedes da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM) espalhadas pela Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí, Ceará e recentemente no Mato Grosso, fica claro que essa profissão se tornou um símbolo e uma fonte de renda em várias regiões do Brasil. Isso não só demonstra o acarajé como um símbolo de força, resistência e preservação da cultura afro-brasileira, mas também evidencia o papel crucial das baianas na economia nacional. A presença da ABAM em diferentes estados sublinha a necessidade de um apoio contínuo para garantir melhores condições de trabalho e promover os direitos fundamentais dessas mulheres, que há anos têm se dedicado a essa profissão.

Neste contexto de resistência e perseverança, as mulheres amefricanas continuam a moldar as narrativas culturais e sociais do Brasil. Elas não apenas preservam suas raízes ancestrais, mas também lutam diariamente por reconhecimento e dignidade. No entanto, apesar dos desafios enfrentados, o futuro brilha com promessas de mudança. Esperamos que um dia todas as mulheres amefricanas sejam elas artistas, empreendedoras ou trabalhadoras tradicionais, sejam valorizadas e respeitadas por suas contribuições à sociedade.‘ Assim, a cada 25 de julho e 25 de novembro, celebramos não apenas suas conquistas, mas também renovamos nosso compromisso em amplificar vozes, apoiar suas comunidades e garantir que suas histórias continuem a ser contadas com orgulho e dignidade. Que as baianas de acarajé, Lunna Montty, Crica Monteiro, Camilla Apresentação e tantas outras inspiradoras mulheres, sirvam como faróis de esperança e agentes de mudança em um mundo que, mais do que nunca, precisa ouvir e valorizar suas histórias e vivências.


Fernanda Meneses é jornalista e fotógrafa baiana. Fez parte da 3ª turma do Curso de Multimídia de Geledés- Instituto da Mulher Negra e escreve para o Portal Geledés.

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