Mulheres quilombolas e o direito à terra

STF julgará ações que podem aprofundar o quadro de violações e retrocessos sobre os direitos territoriais; mulheres quilombolas estão apreensivas

Por Célia Cristina da Silva Pinto e Selma dos Santos Dealdina Do Carta Capital

O decreto 4887, de 2003, é a mais bela declaração de reconhecimento a um povo historicamente excluído. Com o objetivo de disciplinar o falso cenário democrático, lembrando o compromisso histórico do Brasil para com o povo negro – neste caso, nós, quilombolas-, o Decreto se traduz em empoderamento de mulheres e homens que resistem nestes espaços de ancestralidade, territorialidade e identidade quilombola.

Busca, ainda, assumir um compromisso histórico conosco num processo longo de uma possível reparação para aqueles(as) que sempre viveram à margem e nas mazelas no não acesso às condições básicas para sobreviver com dignidade a vida humana.

Ao decreto 4887 – que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos – não cabe questionamento: espera-se que seja cumprido na sua íntegra com garantias ao direito de ir e vir, viver e sem violações aos nossos direitos a cada dia sendo retirados em plena luz do sol.

Estamos apreensivas, pois no dia 16 de agosto de 2017, no Supremo Tribunal Federal (STF), às 14h, acontecerá o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3239/04 que tem por finalidade julgar o decreto 4887/03, que regulamenta os procedimentos administrativos para titulação dos territórios quilombolas, para assim cumprir com a determinação constitucional contida no art. 68 do ADCT.

O racismo no Brasil se molda a cada dia, se tornando um crime perfeito contra aquelas e aqueles que sentem na pele, seja na sociedade ou pelas ferramentas que a sociedade utiliza, o que chamamos de racismo institucional. Então, não titular terras para quilombolas é racismo!

Após a falsa abolição, os estrangeiros que foram convidados a vir ao país receberam terras como forma de incentivos. Então nos perguntamos: por que com os escravizados não foi feito o mesmo processo? Seria o mínimo devido pelo Brasil diante de tanto sangue e suor para erguer essa nação. Mas não, a nós nada restou, nem a terra, nem os frutos, nem documentos, nem escola, nem moradia, nem a fatia do que era nosso por direito, apenas a “liberdade”.

O dia 14 de maio de 1888, o seguinte da falsa abolição, se repetirá após 129 anos, em 17 de agosto de 2017, numa releitura contemporânea do passado tão presente nas nossas vidas. E com alguns agravantes, como o acirramento expressivo da já violência no campo contra lideranças quilombolas no Brasil.

Neste sentido queremos chamar atenção para os requintes de crueldade contra a vida das mulheres quilombolas e aqui queremos lembrar: Joelma da Silva Elias (Quilombo Alpes/RS), assassinada em 2008; Maria do Céu Ferreira (Quilombo Serra da Talhada Urbana em Santa Luzia/PB), assassinada em 2013; Francisca das Chagas Silva (Quilombo Joaquim Maria em Miranda do Norte/MA), assassinada em 2016; Helen Moreira (Quilombo Ilha em Vera Cruz/BA), assassinada em 2017; e Maria Trindade da Silva Costa (Quilombo Santana do Baixo Jambuaçu em Moju/PA), assassinada em 2017,

Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta. E por que falamos nas mulheres? Porque sabemos que na base, de fato nós mulheres quilombolas seremos as mais impactadas e vamos virar, como sempre, estatística. Em alguns, casos nem isso. Estamos falando em mais de 5 mil quilombos no Brasil que resistem nesses espaços de luta para a manutenção de seus territórios.

As lutas das mulheres quilombolas entrelaçam as lutas de resistência dos quilombos no Brasil. Historicamente seguimos os passos que vêm de longe com Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela e Zacimba Gaba, mulheres importantes para a continuidade da luta nos dias atuais.

E nos espelhando nessas mulheres e em tantas outras anônimas do país, que nós, mulheres quilombolas, lutamos contra a invisibilidade da nossa luta contra o racismo, machismo e contra todo tipo de discriminação e violência desta sociedade injusta, racista e desigual. São as mulheres quilombolas que ocupam os cargos de presidentes das associações, federações e de liderança no quilombo.

Neste contexto, é importante destacar que desde a época em que nossos antepassados(as) foram escravizados(as) até os dias atuais, as mulheres quilombolas tiveram e têm um papel de extrema importância nas lutas de resistência, manutenção e regularização de seus territórios.

Estejam no quilombo ou na cidade, estas mulheres têm sido as guardiãs das tradições da cultural afro-brasileira, além de cuidar da casa, dos filhos(as), dos(as) idosos(as), doentes, da roça, dos animais e da preservação dos recursos naturais. Nos tempos da escravização, providenciavam alimentos e proteção aos refugiados(as) das lutas de resistência pela liberdade e estavam diretamente envolvidas na organização do quilombo e de muitas revoltas.

Foram e continuam fundamentais na luta dos quilombos pelos seus direitos. Atualmente, muitas mulheres quilombolas enfrentam a fúria de fazendeiros, grileiros, por muitas vezes pagando com a própria vida a defesa de seus territórios. Também assistem a morte de seus filhos(as) no conflito agrário.

A participação das mulheres quilombolas em espaços de definição de políticas tem garantido a proposição de políticas públicas que levem em conta o recorte de gênero, racial e geracional, uma vez que exercem o papel ativo na sociedade, levam suas demandas e denunciam o racismo institucional, a invisibilidade, a violência doméstica, sexual e psicológica e a ausência do estado nas suas comunidades.

Outra batalha travada diariamente pelas comunidades quilombolas dá-se no campo do direito. Compreender os meandros da legislação brasileira permite a tomada de posições firmes na defesa dos direitos e na denúncia de abusos e injustiças.

Seguimos nesta luta solitária, dura, árdua e embrutecedora, mas tentamos manter a ternura nas trocas de experiências, nas histórias de superação, recarregando as energias para continuar escrevendo o destino nas páginas da história apagadas pelo racismo. Nós temos a voz e nós vamos falar: estamos na labuta por igualdade e justiça.

Em nome de tantas mulheres quilombolas que se encontram privadas de sua liberdade ou ameaçadas de morte; por todas que tombaram na luta, que tiveram seu sangue derramado pelo conflito agrário ou pela violência doméstica; em nome de cada menina que nasce; em nome de cada mulher que assume o papel transformador na sociedade que não está preparada para nós: nós resistimos e não seremos transformadas, vamos transformar.

O Brasil é Quilombola!

Nenhum Quilombo a menos!

*Célia Cristina da Silva Pinto é coordenadora nacional da Conaq e do Grupo de Conscientização Negra OMINIRÁ; Selma dos Santos Dealdina é quilombola, assistente social e Secretária Executiva da Conaq.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) foi fundada em 12 de maio de 1996 em Bom Jesus da Lapa (BA).

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