Stephanie Ribeiro: Nossa apatia também colocou o nazismo nas ruas

Colunista de Marie Claire, Stephanie Ribeiro compara os ataques racistas e o apoio nazista que mostrou sua face nos protestos de Charlottesville, nos Estados Unidos, com o racismo e os movimentos anti-imigração no Brasil

Ódio em Charlottesville: Manifestante segura cartaz que diz “Pare o Ódio”, durante manifestação em Minnesotta, nos Estados Unidos (Foto: Getty Image)

Em Charlottesville, no Estado norte-americano de Virginia, se concretizou o que já vinha sendo professado nos Estados Unidos desde a ascensão de Trump nas eleições e a concretização desse fato. Grupos de supremacistas brancos foram às ruas em prol da união da direita, entoando palavras de ordem contra negros, latinos, LGBTQ e judeus.

Insatisfeitos e se sentindo de alguma forma vítimas de um contexto socioeconômico que inclusive os favorece mais que os demais estruturalmente, os manifestantes gritaram palavras de ordem contra os imigrantes, que eles temem que roubem seus empregos, quando na verdade estes, em sua maioria, ocupam os cargos marginalizados e com baixa remuneração. E claro, reafirmaram em suas falas que as “vidas brancas importam” em contraposição ao “Black Lives Matter”, movimento que tem como foco principal alertar e denunciar os assassinatos de negros – por simplesmente serem negros.

Basicamente, esses argumentos que vitimizam brancos conservadores por serem brancos e de direita não têm nenhum cabimento, mas fazem sentido num contexto de crise social, econômica e MORAL. Em 2017, acompanhamos estupefatos supremacistas dispostos inclusive a matar pelo que acreditam: Heather Heyer, de 32 anos, morreu, vítima de um atropelamento criminoso, defendendo as ruas contra o fascismo e os supremacistas brancos  em Charlottesville.

Charlottesville: manifestante em Minnesotta segura cartaz com a foto de Heather Heyer, de 32 anos, que morreu atropelada durante manifestação contra o racismo (Foto: Getty Image)

Diante dessa barbárie absurda em tantos níveis, qual nossa culpa nisso?
Primeiro quero deixar claro que o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive o avanço de um discurso de extrema direita, assim como é fato que o ódio racial nunca deixou de existir em nosso País, e a extrema direita, diante de suas pautas conservadoras, se alinha, defende e se sente representada também pelo discurso de nazistas e supremacistas brancos. Não só não vivemos a democracia racial, como a cada 23 minutos um jovem negro no Brasil morre por ser negro, segundo dados da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre o Assassinato de Jovens – a CPI constatou que 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados por ano. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos.

A população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo, com um total de  622.202 presos, dos quais 61,6% são negros, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen – 2014). Juntando o encarceramento massivo e os assassinatos, é nítido como a situação do negro brasileiros se manteve à margem mais de cem anos após o fim legal da escravidão, que, vale lembrar, durou mais de 300 anos.

Em paralelo a esses dados, em maio deste ano, na Avenida Paulista, integrantes dos movimentos Direita São Paulo e Juntos pelo Brasil protestaram contra os imigrantes que vivem em São Paulo e contra a Lei de Migração, aprovada no Senado. Uma das palavras de ordem da manifestação era contra a “islamização do Brasil”.

Charlottesville: Integrantes do grupo racista The Ku Klux Klan protestam em 8 de julho, em Charlottesville, na Virginia. A KKK tenta impedir a remoção de uma estátua em homenagem ao general confederado Robert E. Lee, movimento que era contra o fim da escr (Foto: Chet Strange/Getty Images)

Neste mês, um imigrante sírio foi vítima de xenofobia no Rio de Janeiro. O agressor, além de portar um pedaço de pau, ameaçando a vítima, gritava em tom agressivo: “Homem-bomba”, como forma de ofendê-lo. Eu poderia finalizar com esses exemplos, mas quero lembrar que nossa intolerância está nas ruas, e que políticos conservadores brasileiros estão ganhando força política e, principalmente, midiática nas redes sociais com chances de serem eleitos, assim como Hitler foi eleito na Alemanha.

O filme Ele Está de Volta (consta no catálogo da Netflix), baseado num livro de mesmo nome, com narrativa sátira é uma denúncia à ascensão e à força que discursos conservadores estão ganhando na figura de políticos carismáticos, que usam do ódio e da banalização como principal forma de visibilidade e o transformam em agenda política. Estamos acompanhando o populismo da extrema direita, e podemos considerar que existem políticos brasileiros que se enquadram exatamente nas caracteristicas mencionadas, capazes de prestar homenagens públicas a militares responsáveis pelo desaparecimento de pessoas durante a ditadura brasileira. Ainda assim, há quem defenda a atitude como liberdade de expressão – lembrando que impedir o discurso de ódio não é censura, é defesa da dignidade e qualidade de vida de todos nós. Ele Está de Volta usa para essa narrativa de denúncia ao ódio naturalizado nada mais, nada menos que Hitler.

No filme, Hitler volta à Alemanha 70 anos depois do fim do nazismo, em 2014. O que vemos no filme é uma mistura de ficção com fatos reais, que são entrevistas feitas por Hitler com pessoas naquele ano, que não são atores, mas, sim, uma população sem vergonha de falar sobre seus piores desejos e ódios. Durante as entrevistas, há relatos sobre o medo da miscigenação e dos imigrantes, sendo a defesa da ideia de raça pura alemã, o pedido do fim da democracia (isso te lembra algo?), o fim da corrupção por meio do desmantelamento do Estado (e isso?), a defesa de campos de concentração e a concepção de que líderes carismáticos podem resolver todos os problemas sociais, econômicos e políticos por meio da limpeza étnica e pelo restabelecimento da “ordem”. As entrevistas feitas em 2014 mostram apoio e até una empatia por aquela figura representando Hitler, não só por sua caracterização, mas também por suas falas.

Ele Está de Volta: filme mostra as consequências do retorno de Hitler à Alemanha em 2014 (Foto: Divulgação )

O grande trunfo dessa sátira é a crítica à população e à naturalização desses discursos de ódio, no caso, pelo uso das novas tecnologias, em especial a internet e as redes sociais que se tornaram um canal de disseminação dessas falas. A midiatização do ódio serve, sem dúvida, para a banalização da gravidade do que representa os discursos antinegros, antiLGBTQ, antijudeus, antilatinos, antimiscigenação. Discursos antipessoas que justificam massacres, torturas e destruição de famílias. O mal tem visibilidade, pois o ódio vende! Mais do que isso, o ódio atrai o cidadão comum: Hitler não era um monstro, ele era uma pessoa, e esse é o ponto que precisamos falar à respeito.

As pessoas me seguem, porque, no fundo, elas são como eu. Essa é uma das falas finais do filme, e ela diz muito sobre todos nós.

Enquanto colocarmos os outros como o mal, o monstro, ou até mesmo entendermos que o discurso nazista só existe para além das nossas fronteiras, estaremos nos mantendo em silêncio e inertes diante da supremacia branca e ódio racial. O silêncio dos ditos inocentes e a apatia diante das denúncias de grupos minoritários à realidade opressora diária fortalecem o discurso de que o ódio pode ser público. Minorias morrem diariamente, e aparentemente isso só importa a elas. Enquanto negro, percebo que as pessoas realmente acreditam que o racismo é só um problema meu e de outros negros, quando ele na verdade é um problema da sociedade. Sendo assim de TODOS NÓS.

O ódio não é opinião, nem sequer liberdade de expressão. Ele é consequência de uma sociedade que não quer falar sobre suas ações e seus ódios individuais e coletivos, preferindo colocar nos outros a culpa por crises de um sistema econômico e até mesmo por suas frustrações pessoais.

No que diz respeito ao racismo que me impacta diretamente, as pessoas sempre conhecem um racista, mas elas nunca lidam com seu próprio racismo. No filme Ele Está de Volta, numa cena, o personagem Fabian Sawatzki fala “ni**a”, termo racista e ofensivo, e o próprio Hitler o alerta de que sua fala é racista, mas, ao invés de revê-la e se desculpar, ele simplesmente mente, dizendo que é uma gíria semelhante a “amigo”. O racismo nos detalhes, nas ditas sutilezas e na estrutura que nos coloca nas piores situações de moradia, por exemplo, são ligados e interrelacionados. O medo que temos de admitir nosso próprio racismo só não é maior que os privilégios e o conforto de se manter racista para com uis negros, num contexto social em que negros impactados pela negação e a aplicação de seus direitos.

O racismo mora no sujeito comum. E o sujeito comum somos nós e os nossos próximos.

Falamos sobre os racistas como se eles fossem monstros, bichos papões. Estamos acostumados a ver o racista como uma pessoa distante, mas ele não é! Usando o exemplo dos negros, o racista é tanto a pessoa que te ofende e te bate por ser o que você é, quanto aquela pessoa que te dá bom dia sorrindo, e você acredita que é uma boa pessoa, mas que toda noite liga o computador e, usando uma personagem fake, diz odiar pessoas negras. Racistas não são monstros, são pessoas que foram condicionadas a serem assim porque somos educados para sermos racistas. Há várias questões, inclusive no que leva jovens, mesmo negros, a reproduzirem o racismo na internet reunidos em gangues para ter visibilidade. Reproduzimos o que nos fere visando aprovação. Me soa muito tênue o limite entre alguém que ofende negros nas redes e aquele que vai às ruas com tochas, entoar um discurso racista. Quando entendemos que o ódio está no sujeito comum, entendemos que qualquer sujeito comum pode, para defender o que acredita e os próprios benefícios pessoais, como a manutenção da desigualdade social, ir às ruas com tochas nas mãos.

Minha avó branca segura a bolsa mais forte quando vê um jovem negro na rua. Minha tia-avó condenou o casamento de minha avó e cortou relações com ela, pois ela estava pondo um NEGRO na família. Ser de família interracial é abraçar racistas todos os dias. Nem me digam que isso é mentira, eu sei muito bem como são os laços familiares: eu sou a negra BOA, a negra que merece ser DEFENDIDA, mas há vários outros negros no mundo que não têm esses laços de sangue. Esses a gente ofende. O racismo é o mesmo e no Brasil ele se manifesta muito dessa forma.

Em Chicago, manifestantes carregam o cartaz do movimento Black Lives Matter, que combate o racismo nos Estados Unidos (Foto: Getty Image )

E vai continuar enquanto a gente não mudar as estruturas, e mudar as estruturas é inclusive admitir que o racista, o xenófobo, o supremacista são pessoas que estão vivendo numa sociedade como nós, onde o ódio foi totalmente banalizado e estaremos colaborando para isso enquanto não falarmos e nos importamos com isso como deveríamos por ser um problema nosso. Por fim, sempre que existe ascensão de discursos de ódio, se coloca que os ditos movimentos de base, identitários ou de minorias não estão caminhando com suas discussões para emancipação, portanto são culpados por essa “resposta”. Em outras palavras, se pressupõe que os discursos “vazios” e em círculo estão levando a isso. Quando vamos culpar os odiadores pelo seu próprio ódio, e parar de colocar nas vítimas a responsabilidade por acabar com esse ódio e de reeducar os outros sujeitos, quando essas vítimas mesmo que neguem seus lugares de vítima estruturalmente são cerceadas. Enquanto negra sinto que não basta sofrer racismo tenho que exalar amor e reeducar a sociedade que só nos fere, isso parece justo? Não, o que não impede que muitos acreditem nisso e recebam meu apoio pela dedicação e luta. Sinto que mesmo discordando de vários negros e suas condutas em relação a forma como levam o debate racial, eu não posso culpá-los por respostas racistas, muito menos silenciá-los e dizer que existe apenas uma forma certa de luta. Quero e preciso silenciar a ascensão de supremacistas, racistas, lgbtfóbicos, islamofobicos,antissemitas. Essa é uma prioridade coletiva, precisamos discutir urgentemente quando a concretização do nosso ódio pode se tornar voto em 2018.

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