Muniz Sodré sofreu com uma Covid grave, completa 80 anos fazendo caratê e defende a sabedoria do candomblé para combater o ódio

Um dos maiores pensadores da comunicação do país, ele diz que redes, que são empresas, devem virar instituição: ‘Mas não sei como isso vai se dar. Se soubesse, reivindicaria o cargo de CEO do Google’

Poucas horas antes de conversar com o GLOBO, na última segunda-feira (10), Muniz Sodré treinou caratê. Aos 80 anos, que completa nesta quarta (12), Muniz, um dos maiores pensadores da comunicação do país, não descuida da saúde. A boa forma física ajudou a salvá-lo da Covid-19. Entre maio e junho de 2020, ele atravessou 40 dias internado. Foi intubado duas vezes e passou pelo CTI. Recuperou-se e já está “trivacinado”.

Autor de uma vasta obra que vai do ensaio à ficção — com destaque para títulos como “Monopólio da fala”, “Pensar nagô” e as aventuras do detetive Timóteo Sete, entre outros —, Muniz também está em ótima forma intelectual. No ano passado, lançou “Sociedade incivil: mídia, iliberalismo e finanças”, no qual afirma que os algoritmos, em aliança com elites predatórias, dilapidaram as instituições democráticas e vitimaram verdade factual, discernimento crítico, respeito às diferenças e solidariedade. Professor emérito da UFRJ que se define como “um nego moderno”, Muniz diz que os terreiros de candomblé, instituições populares que resistem à incivilidade, podem ensinar a negociar as diferenças.

Como é fazer 80 anos depois de enfrentar uma infecção grave por coronavírus em 2020?

Fazer 80 anos é celebrar a senectude. Minha vida é uma travessia amorosa compartilhada com minha mulher, minhas filhas e meus netos. Sou baiano do candomblé nagô, do terreiro Axé Apô Afonjá, em Salvador. Aprendi a ser resiliente, que é aceitar o real como ele é para transformá-lo. O real que me cerca é catastrófico. Percebi que desconhecia a parcela do povo brasileiro que elegeu o atual governo. É uma parcela protofascista, etnocida, que sofre pra burro, mas pactua com os detentores de privilégios. É um choque muito grande. O Brasil se revelou para mim ainda mais brutal do que na ditadura militar. Depois do golpe de 1964, eu sentia que um elefante tinha sentado na minha cabeça. Agora, a opressão militarista vem com coisa pior, que é rebaixamento moral, ético e político da vida nacional. É escandaloso. Talvez devesse voltar a fazer psicanálise, porque esse choque tem me abalado.

No livro recente “A sociedade incivil”, o senhor aborda a degeneração das instituições democráticas. O Brasil foi fundado na violência. Já tivemos sociedade civil aqui?

Curiosamente, tivemos um esboço de sociedade civil quando a violência era maior. No Império, quatro quintos da população brasileira eram escravizados, mas pretos e pardos ascendiam socialmente. Parte da elite era negra e mulata. Francisco Jê Acaiaba de Montezuma, um negão baiano, foi diplomata na Inglaterra. Ninguém sabe disso, mas está no Google! Depois da abolição, o racismo constituiu uma forma escravista, vigente até hoje na sociedade brasileira, que passou a impedir que isso acontecesse. Depois da ditadura militar, a sociedade civil ainda tinha alguma força. As forças políticas se recompuseram e fizeram a Constituição de 1988, que é de extrema importância.

Quando começou a degradação das instituições?

Os partidos se desintegram e hoje só representam o interesse de famílias. Giram ao redor de si próprios e das verbas do fundo eleitoral. Isso está acontecendo no mundo todo. Nos anos 1920, Carl Schmidt, teórico político alemão, já dizia que a democracia parlamentar estava condenada ao centro e à corrupção. O centro que temos hoje no Brasil começou com Fernando Henrique Cardoso, que quebrou a espinha dorsal do movimento sindical ao derrotar a greve dos petroleiros, em 1995. E, como que por irradiação, as demais instituições se abalaram. Mas FHC ainda fez um governo cível. Já a extrema-direita brasileira é suicida. É um capitalismo de destruição, de aniquilamento dos recursos naturais e humanos. É predação de valores e de gente.

Alguma instituição brasileira ainda resiste?

As instituições populares, como o carnaval, que eu defendo que não aconteça este ano, e os terreiros, são fortalezas. A direção do carnaval tem bicheiro e matador? Tem, mas é uma instituição popular forte independentemente do Estado. Assim como a congada e o maracatu. Os cultos afro são instituições litúrgicas e populares fortíssimas, de onde não sai nenhum maluco fundamentalista. E popular não é o contrário de erudito, porque eu estou há 40 anos no candomblé e ainda sou neófito. É a religião mais pós-moderna que existe. No meu terreiro, na Bahia, tem até padre e rabino. O candomblé é uma instituição do povo, uma vacina.

E a imprensa, resiste?

Há dez anos, eu era cético em relação ao futuro da imprensa, achava que estava acabado. O impresso entrou em crise, mas o jornalismo talvez esteja mais forte do que nunca, alimentado pela crise. Talvez os próprios jornalistas não percebam isso, porque é muito difícil trabalhar em redação. A sociedade incivil se organiza para destruir o jornalismo por meio das redes, que não são instituição, são empresas. Embora eu acredite que as redes vão se institucionalizar, porque ou é isso ou o suicídio da sociedade. Mas não sei como essa institucionalização vai se dar. Se soubesse, reivindicaria o cargo de CEO do Google (risos).

Em que medida suas pesquisas sobre comunicação, pelas quais é reconhecido na academia, e seu interesse pelas culturas afro-brasileiras convergem?

Isso vem da minha condição de negro de terreiro. Os nagôs eram grandes negociadores. Negociar não é só comércio, é negociar as diferenças. Zé Limeira, cantador nordestino, um dos maiores versejadores do cordel, disse o seguinte: “Eu sou um nego moderno / Foi não foi, estou pensando…” São versos de gênio! Eu sou um nego moderno. Sou múltiplo de nascimento. Minha avó paterna era nagô. A materna, cigana. Meu avô materno, indígena tupinambá. Eu não acredito em fechamento disciplinar. A comunicação é ponte, é uma disciplina que apaga fronteiras e negocia diferenças.

A negociação das diferenças pode ajudar a combater o “ódio como forma social” a que o senhor se refere em “A sociedade incivil”?

Temos que começar pelo reconhecimento da diversidade. O Brasil é heterogêneo: indígena, sertanejo, ribeirinho, suburbano. Mas não é só reconhecimento intelectual, é aproximação. Só isso combate os discursos de ódio que passaram a reger a sociedade. O ódio é aprendido. Assim como o amor. O único sujeito que nasce amando é o cachorro. Nós aprendemos a amar.

O senhor continua lutando capoeira e caratê?

Capoeira já não jogo há muito tempo, mas caratê eu treino duas vezes por semana on-line. Treinei hoje! Cheguei a voltar a treinar presencialmente, mas aí vieram a Ômicron e a influenza… Também faço musculação. Já sou coroa, tenho que manter a forma. Os médicos acham que recuperei bem da Covid porque tenho boa forma física.

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