Na contra a corrente

Não faz meu estilo cultivar tristezas e desânimo, mas o desejo de vida tem me escapado pelos dedos, diante de um cenário tão desolador. O pulso ainda pulsa, mas confesso que senti fundo os últimos golpes. O assassinato brutal da Marielle, a ruína da política institucional, o autoritarismo quase fascista que perdeu a vergonha de mostrar a cara – pelo contrário, bate no peito com orgulho a professar suas intolerâncias –, a crise econômica que joga literalmente na rua da miséria milhões de pessoas e a persistência da violência simbólica e real que segue matando a juventude negra e das favelas, são algumas das feridas abertas que subtraem as minhas forças.

Por Atila Roque Do Atila Roque

Foto: Reprodução/Atila Roque

Mas não estou sozinho, pelo o que parece. Flávia de Oliveira, minha amiga mais otimista, sempre capaz de tirar alegria e força das pedreiras mais impenetráveis, fala do desânimo generalizado com a Copa em seu artigo no O Globo dessa semana. Ela usa uma palavra mais poética (e triste): desencanto. Estamos, como povo, menos dispostos a alegria. E parece que não vemos mais qualquer razão para cultivar aquela picardia alegre com a qual sempre fomos capazes de rir dos azares cotidianos, sacudir a poeira e seguir em frente. Nosso orgulho de ser brasileiros parece ferido de morte depois de tantas pancadas.

O psicanalista Contardo Caligaris, na Folha de São Paulo, vai mais fundo ao arriscar um diagnóstico de depressão do tipo “sociogênica”, coletiva. E a Organização Mundial da Saúde reforça o diagnóstico, apontando, em 2017,  o Brasil como o quinto país mais deprimido do mundo e o campeão absoluto em ansiedade. Somos 11,5 milhões de deprimidos, cerca de 5,8% da população. Só estamos menos deprimidos do que a Ucrânia (6,3%), EUA (5,9%), Austrália (5,9%) e Estônia (5,9%). Com isso vamos perdendo a capacidade de constituir uma esperança compartilhada no futuro da nação.

O risco maior em quadros sociais como o detectado por Flávia e Contardo é vermos avançar um estado de anomia generalizada que crava um sentimento difuso de solidão e abandono. Mais do que nunca precisamos buscar espaços de sociabilidade criativa, acolhimento afetivo e diálogo político verdadeiramente plurais e inclusivos. Romper as bolhas que represam nossa imaginação e circunscrevem nossas possibilidades de pensar outros caminhos individuais e coletivos. É preciso fazer de tudo para desatar a âncora que nos puxa para baixo e buscar o ar puro, o espaço aberto, o mar infinito capaz de alimentar o desejo de viver.

Uma vez, na adolescência, experimentei a experiência terrível do afogamento. Nadava bem, era abusado, e um dia cai em uma das armadilhas do mar. Pensei que não sairia vivo. Suei frio dentro d’água, nunca imaginei que isso era possível. Tenho a impressão que estamos, muitos de nós, vivendo uma experiência parecida. Um fundo de poço que parece não ter fim. Mas naquela tarde nublada, na Praia do Forte, em Cabo Frio, sozinho, encontrei forças para nadar para além da arrebentação, circunscrever a vala em que tinha caído, e nadar de volta à praia, onde fui socorrido pela mão de um amigo que não sabia nadar, mas que teve forças para me arrastar de volta para areia. Acho que é de uma força parecida que precisamos (preciso) hoje para romper com a barreira da arrebentação e, com certeza, muitas mãos amigas para caminharmos juntos de volta à praia.

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