Na época do Brasil colonial, lei permitia que marido assassinasse a própria mulher

Jorge Amado abre o clássico Gabriela, Cravo e Canela narrando o aflitivo momento em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça flagra a mulher, dona Sinhazinha, na cama com o dentista Osmundo Pimentel e, sem hesitar, executa os dois a tiros. Para a Ilhéus dos anos 20, o marido traído estava coberto de razão:

Uma família brasileira do início do século 19 retratada por Jean-Baptiste Debret: mulher submissa ao marido. Foto: Reprodução/Jean-Baptist Debret
Uma família brasileira do início do século 19 retratada por Jean-Baptiste Debret: mulher submissa ao marido. Foto: Reprodução/Jean-Baptist Debret

Ricardo Westin e Cintia Sasse

“E toda aquela gente terminava no bar de Nacib, enchendo as mesas, comentando e discutindo. Não se elevava voz — nem mesmo de mulher em átrio de igreja — para defender a pobre e formosa Sinhazinha. Mais uma vez o coronel Jesuíno demonstrara ser homem de fibra, decidido, corajoso, íntegro”.

Embora seja ficcional, Gabriela se baseia em elementos da realidade daquela época. O Brasil evoluiu, mas certos comportamentos arcaicos não acompanharam. Em pleno século 21, a violência contra a mulher, das surras aos assassinatos, atinge índices chocantes. Trata-se de uma “arraigadíssima tradição patriarcal”, segundo a historiadora Mary del Priore, autora de Histórias Íntimas —sexualidade e erotismo na história do Brasil (editora Planeta):

— Na Colônia, no Império e até nos primórdios da República, a função jurídica da mulher era ser subserviente ao marido. Da mesma forma que era dono da fazenda e dos escravos, o homem era dono da mulher. Se ela não o obedecia, sofria as sanções.

As sanções eram pesadíssimas. Os arquivos paroquiais dos séculos 18 e 19 estão ­repletos de relatos de senhoras que apanhavam com varas cravejadas de espinhos, que eram obrigadas a dormir ao relento, que ficavam proibidas de comer por vários dias e até que eram amarradas ao pé da cama enquanto o marido, no mesmo aposento, deitava-se com a amante. As esposas eram tão brutalizadas que os bispos, em certos casos, atendiam-lhes as súplicas e concediam a separação de corpos.

Homicídio autorizado

A vida do Brasil colonial era regida pelas Ordenações Filipinas, um código legal que se aplicava a Portugal e seus territórios ultramarinos. Com todas as letras, as Ordenações Filipinas asseguravam ao marido o direito de matar a mulher caso a apanhasse em adultério. Também podia matá-la por meramente suspeitar de traição — bastava um boato. Previa-se um único caso de punição. Sendo o marido traído um “peão” e o amante de sua mulher uma “pessoa de maior qualidade”, o assassino poderia ser condenado a três anos de desterro na África.

No Brasil República, as leis continuaram reproduzindo a ideia de que o homem era superior à mulher. O Código Civil de 1916 dava às mulheres casadas o status de “incapazes”. Elas só podiam assinar contratos ou trabalhar fora de casa se tivessem a autorização expressa do marido.

— O Brasil de hoje não é o Brasil do passado, mas o controle do homem sobre a mulher persiste na memória social — explica Lia Zanotta, do Departamento de ­Antropologia da Universidade de Brasília (UnB).

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Assim, não se devem enxergar os índices epidêmicos de violência contra a mulher como resultado de transtornos psicológicos ou famílias desestruturadas. Não há nada mais falacioso do que se creditarem espancamentos e assassinatos ao alcoolismo puro e simples, por exemplo. O homem que abusa da bebida normalmente não ataca o amigo de bar nem agride o vizinho. O alvo é, premeditadamente, a mulher.

Mais do que individual, a violência doméstica é um fenômeno histórico e social. O conceito de que o homem é superior, deve subjugar a mulher e não permitir que ela decida sobre a própria vida foi construído e solidificado ao longo dos séculos e se mantém até hoje, permeando toda a sociedade. Fatores como bebida, droga, ciúme e desemprego são meros estopins.

— O homem é criado para não ter medo, não levar desaforo para casa, ser o provedor da família e não demonstrar sentimento nenhum, com exceção da raiva. Que menino nunca foi repreendido pelo pai com a ordem “seja homem”? A mulher é criada ao contrário. Segundo essa criação, ele manda e ela obedece. Ainda somos uma sociedade machista — afirma Carlos Eduardo Zuma, diretor do Instituto Noos, uma ONG de direitos humanos localizada no Rio.

Com a maior naturalidade, o machismo é ensinado diariamente dentro dos lares. Acabado o jantar, os meninos estão liberados para ver TV, mas as meninas precisam lavar a louça. No fim de semana, os adolescentes podem ficar na rua até altas horas, enquanto as jovens têm horário para estar em casa. O pai se enche de orgulho quando ouve que o filho está namorando, mas fica profundamente contrariado quando quem está de namoro é a filha. Para não mencionar as situações em que a mulher é maltratada pelo marido diante dos filhos — exemplo que eles reproduzirão nos próprios relacionamentos no futuro.

Legado dos vikings

A Islândia é apontada por diversos estudos internacionais como o melhor país do mundo para as mulheres — em todos os aspectos. A taxa de homicídios femininos, por exemplo, é zero. Não há diferença significativa entre o salário dos homens e o das mulheres. Na ilha, o machismo é abominado.

O invejável patamar de civilidade serve para confirmar que a violência contra a mulher é, sim, uma questão histórica e social. Na era dos vikings, mil anos atrás, enquanto os homens se lançavam ao mar, eram as mulheres que tinham a responsabilidade de manter a ilha funcionando. Elas jamais foram vistas como inferiores. Não por acaso, a Islândia foi, em 1980, o primeiro país do mundo a eleger uma presidente mulher, Vigdís Finnbogadóttir — que, além de tudo, era mãe solteira.

Em 2010, num baile funk no Rio, o jogador de futebol Adriano e a namorada protagonizaram uma briga espetacular, com pedradas e empurrões. Poucos dias depois, o goleiro Bruno Fernandes saía em defesa do colega de equipe:

Cena do vídeo em que Eliza Samudio vai a delegacia da mulher, em 2009, prestar queixa contra o goleiro Bruno: assassinada meses mais tarde. Foto: Reprodução/Jornal Extra
Cena do vídeo em que Eliza Samudio vai a delegacia da mulher, em 2009, prestar queixa contra o goleiro Bruno: assassinada meses mais tarde. Foto: Reprodução/Jornal Extra

— Qual de vocês [jornalistas] que é casado e nunca brigou com a mulher? Que nunca saiu na mão com a mulher? É um problema pessoal do cara. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.

A fala de Bruno foi reveladora e desastrosa. Reveladora por escancarar um comportamento que é generalizado (a violência doméstica), mas raramente confessado. E desastrosa por apresentar esse comportamento como natural. O tom quase inocente da declaração foi um sinal claro de o quanto o machismo está enraizado na sociedade. Meses depois, o goleiro se veria enredado no assassinato de Eliza Samudio, sua ex-amante.

Mansão e favela

A superioridade física dos homens vem desde os primórdios da espécie humana. Segundo investigações científicas, o vigor masculino se justifica — ironicamente — pela necessidade de conquistar as mulheres. Levava vantagem no cortejo da fêmea o macho que se mostrava forte o suficiente para, primeiro, derrotar os demais pretendentes e, depois, garantir a sobrevivência da família. Pela lei da seleção natural, só os mais robustos se perpetuaram. O problema é que, desde então, muitos se aproveitam da força herdada dos ancestrais para dominar as mulheres.

De acordo com as delegacias especializadas na violência doméstica, as partes do corpo que os homens mais atacam são o rosto e os seios. Há casos de homens que ferem a testa da companheira usando marcador incandescente de gado. Com esses alvos, o objetivo subjacente é destroçar-lhes a autoestima e impedi-las de serem desejadas por outro homem — assim, ficam presas ao agressor para sempre.

No ano passado, rodaram o mundo fotos em que a cantora pop Rihanna aparecia com a face deformada pelos murros do namorado, o cantor de rap Chris Brown. É um exemplo que derruba os estereótipos. Ambos são famosos, ricos, esclarecidos e vivem nos Estados Unidos, país particularmente intolerante à violação das leis.

Não existe um perfil clássico do homem agressor nem da mulher agredida. A violência doméstica não tem classe social. Ocorre nos bairros nobres e nas favelas. Não tem escolaridade. Humilha tanto as mulheres pós-graduadas quanto as que mal sabem assinar o nome. Não tem raça. Indistintamente, fere brancas, negras, orientais e índias. Não tem país. Homens avançam sobre suas companheiras das regiões mais miseráveis da África às mais desenvolvidas da Europa.

Há tempos, o direito de matar a mulher, previsto pelas Ordenações Filipinas, deixou de valer. O machismo, porém, sobreviveu nos tribunais. O Código Penal de 1890 livrava da condenação quem matava “em estado de completa privação de sentidos”. O atual Código Penal, de 1940, abrevia a pena dos criminosos que agem “sob o domínio de violenta emoção”. Os “crimes passionais” — eufemismo para a covardia — encaixam-se à perfeição nessas situações.

Atendimento na Delegacia da Mulher de Brasília: serviço ainda escasso. Foto: Arthur Monteiro/Agência Senado
Atendimento na Delegacia da Mulher de Brasília: serviço ainda escasso. Foto: Arthur Monteiro/Agência Senado

Caso Doca Street

Em outra bem-sucedida tentativa de aliviar a responsabilidade do homem, os advogados inventaram o direito da “legítima defesa da honra”. O caso mais emblemático foi o do playboy Doca Street, que em 1976 matou a tiros a jovem e bela Ângela Diniz, em Búzios (RJ). O primeiro julgamento foi em 1979. A defesa a acusou de traição e a classificou de “mulher fatal”. A estratégia deu certo. Doca Street saiu livre do tribunal e chegou a ser aplaudido na rua. Anos mais tarde, ele admitiria ter se sentido constrangido com a absolvição. Em 1981, por pressão dos movimentos feministas, voltou a ser julgado e só então foi para a prisão.

Advogados até hoje invocam a “legítima defesa da honra”. Se vivesse hoje, Jesuíno Mendonça, o coronel assassino de Gabriela, Cravo e Canela, teria chance de livrar-se da prisão.

O machismo é uma praga histórica. Não se elimina da noite para o dia. A criação da Lei Maria da Penha, em 2006, prevendo punição para quem agride e mata mulheres, foi um primeiro e audacioso passo. Antes, muitas brasileiras não denunciavam porque sabiam que seriam ignoradas pelas autoridades. E muitos brasileiros agiam com absoluta tranquilidade porque davam a impunidade como certa.

— Em 2013, tivemos dois julgamentos históricos. O goleiro Bruno foi condenado pelo assassinato de Eliza Samudio. E o policial Mizael Bispo de Souza, pela morte de Mércia Nakashima. Até pouquíssimo tempo atrás, isso seria inconcebível no Brasil — diz Jacira Melo, diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão.

O segundo passo contra o machismo é a educação. Pelo Brasil afora, no mesmo estilo dos Alcoólicos Anônimos, há grupos de ajuda para mulheres que não conseguem se desvencilhar dos companheiros violentos e outros para homens que não sabem refrear o ímpeto de agredir as companheiras. Mas o tipo de educação que mais dá frutos é a que se ensina na escola. Afirma Maria da Penha Fernandes, a mulher que dá nome à lei:

— O que muda o comportamento da sociedade é a educação. Temos que ensinar a nossos filhos desde pequenos, na escola, que a mulher merece respeito. Antes, ninguém usava o cinto de segurança. Hoje, a primeira coisa que a criança faz ao entrar no carro é avisar ao pai que ele precisa pôr o cinto. Quando ela crescer, nem sequer passará por sua cabeça não usar o cinto. Na violência contra a mulher, a lógica é a mesma. Tenho fé que lá na frente os homens aceitarão as mulheres como iguais. Nesse momento, a Lei Maria da Penha se tornará desnecessária.

Fonte: Jornal do Senado

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