Não controlamos o destino de nossos corpos

Um jovem escritor explica, numa carta ao filho, o que significa ser negro na América

Da Revista Piauí 

Eis aqui como tudo começou: certa manhã, acordei com uma pequena dor de cabeça. A cada hora a dor de cabeça aumentava. Eu estava indo para o trabalho quando vi a garota a caminho da escola. Meu aspecto era horrível, ela me deu um Advil e continuou seu trajeto. No meio da tarde, eu mal me aguentava em pé. Chamei meu supervisor. Quando ele chegou, eu estava deitado no depósito, porque não tinha ideia do que poderia fazer além disso. Eu estava com medo. Não entendia o que estava acontecendo. Não sabia a quem recorrer. Estava ali deitado, ardendo em febre, semiacordado, na esperança de me recuperar. Meu supervisor bateu à porta. Alguém tinha vindo me ver. Era ela. A garota de longas tranças rastafári me ajudou a sair e ir para a rua. Ela acenou para um táxi. A meio caminho da corrida eu abri a porta, com o táxi em movimento, e vomitei na rua. Mas me lembro dela me segurando para ter certeza de que eu não ia cair e depois me amparando quando terminei. Ela me levou para a casa dela, uma casa cheia de pessoas amorosas, me pôs na cama, colocou no tocador de CDS ajustando o volume ao nível de um sussurro. Deixou um balde junto à cama. Deixou um jarro com água. Ela tinha que ir para a aula. Eu dormi. Quando ela voltou, eu estava novamente em forma. Comemos. A garota de tranças longas que dormia com quem ela quisesse, sendo esse o seu jeito de demonstrar que controlava o próprio corpo, estava lá. Eu tinha crescido numa casa regida entre o amor e o medo. Não havia espaço para a suavidade. Mas essa garota de longas tranças demonstrava outra coisa – que o amor pode ser leve e compreensivo; que, suave ou duro, o amor era um ato de heroísmo.

E eu não podia mais prever onde encontraria meus heróis. Às vezes eu caminhava com amigos até a rua U[1] e circulava pelos clubes de lá. Era a época da Bad Boy e do Biggie, One More Chance e Hypnotize. Eu quase nunca dançava, por mais que quisesse. Aleijava-me um medo infantil de meu próprio corpo. Mas eu observava como os negros se moviam, como nesses clubes eles dançavam como se seus corpos pudessem fazer tudo, e seus corpos pareciam ser tão livres como a voz de Malcolm X. Lá fora os negros não controlavam nada, e muito menos o destino de seus corpos, que podiam ser requisitados pela polícia; que podiam ser apagados pelas armas, tão pródigas; que podiam ser estuprados, espancados, encarcerados. Mas nos clubes, sob a influência de rum e Coca-Cola na proporção de dois para um, no encantamento das luzes baixas, sob o domínio do hip-hop, eu os sentia no controle total de cada passo, cada aceno, cada giro.

Tudo que eu queria então era escrever da mesma maneira que essa gente negra dançava, com controle, poder, alegria, calor. Eu estava assistindo intermitentemente às aulas em Howard[2]. Sentia que era o momento de ir embora, de me declarar formado, se não pela universidade, pela Meca[3] da universidade. Eu estava publicando resenhas musicais, artigos e ensaios no jornal alternativo local, e isso significava contatos com mais seres humanos. Eu tinha editores – eram também meus professores – e eles foram as primeiras pessoas brancas que vim a conhecer de verdade, pessoalmente. Eles desafiaram minhas ideias preconcebidas – não temiam por mim e não tinham medo de mim. Em vez disso, viam em minha desregrada curiosidade e em minha brandura algo a ser apreciado e aproveitado. E eles me deram a arte do jornalismo, uma poderosa tecnologia para quem está em busca de algo. Eu fazia reportagens locais em D.C., e descobri que as pessoas me contavam coisas, que a mesma brandura que uma vez fizera de mim um alvo agora compelia as pessoas a confiar a mim suas histórias. Isso foi incrível. Eu mal tinha saído das brumas da infância, na qual as perguntas simplesmente morriam em minha cabeça. Agora eu podia ligar para as pessoas e perguntar por que uma loja popular tinha fechado, por que um show tinha sido cancelado, por que havia tantas igrejas e tão poucos supermercados. O jornalismo havia me dado outra ferramenta de exploração, outro modo de desvendar as leis que restringiam meu corpo. As coisas estavam começando a fazer sentido – embora eu ainda não conseguisse enxergar o que eram “as coisas”.

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