(Não) Deu branco! Uma declaração sobre a conveniência da branquitude

por Joyce Souza Lopes

“Narram que o negro somente apanhou,

e não contabilizam o branco que matou”.

Lourenço Cardoso

Uma questão indagadora me inquieta, mais que isso, me impulsiona à busca de reflexões, leituras, referências construtivas para o desenvolvimento não de uma teoria, mas de um posicionamento político que seja condizente com minha prática de militante, e vice-versa. Não se trata aqui apenas de uma investigação científica e sim da tentativa de autoconhecimento e compreensão do meu papel social de mulher branca, de como me refaço na marcação desta identidade racial.

É perceptível o quanto o/a branco/a se abstém das discussões sobre relações raciais, desconsiderando seu condicionante de opressor/a, e sem problematizarmos esse posicionamento, mais uma vez racista, legitimamos a neutralidade, ou melhor, a neutralização da identidade racial branca e concedemos uma zona de conforto que há tempos se configura enquanto prerrogativa tanto para os que reconhecem a existência do racismo, quanto para os que ainda insistem na afirmação de democracia racial.

Portanto, estudar os comportamentos dos brancos é considerar o conhecimento sobre as práticas de sua supremacia racial, e isso é em si construir estratégias políticas, assim, dada a importância desta discussão no Movimento Negro. O/as preto/as já foram, e são, objetos de estudo involuntariamente, sem licenças ou concessões, com direito a equívocos, inverdades e calúnias que reatualizam as ações racistas. Há uma vasta produção tanto do olhar de si, o que contribui positivamente, e, infelizmente, muito pelo olhar do outro, ainda que exista meia dúzia de cinco ou seis que notemos aliados.

Então, porque não desatarmos este silêncio diante do que é ser branco? É timidamente que começamos a indagar-nos. Defendo que os preto/as falem dos brancos/as e mais que isso, que os brancos/as falem de si. É imprescindível uma atenção a esse sentido, não se trata de uma perspectiva de centralização ou superposição e sim de colocações pontuais e elucidativas às nossas discussões sobre raça. Avançamos com a denúncia do mito de democracia racial, avançamos com a afirmação e auto-afirmação positiva do que é ser negro/a e avançamos quando aponta-se o conforto da brancura, à medida que os/a próprios/a branco/as admitirem suas condições de privilégios.

A superação do nosso racismo, digo ‘nosso’ considerando a impossibilidade do/a negro/a ser racista, do racismo consequente de práticas coletivas, individuais e cotidianas, é conquistada quando assumimos criticamente nossas atribuições simbólicas, subjetivas e materiais e, mais que isso, quando nos fazemos capazes não de ceder, mas de devolver o que é de direito da população negra, de relacionar o nosso interesse individual com o interesse coletivo e, quando divergente, saber mapear o que de fato é ser um sujeito aliado à luta antirracista.

Temos aqui dois condicionantes, a compreensão da ausência da afirmação racial branca e como se produzir o inverso, a sua (auto)identificação e (auto)declaração, destaco o ‘auto’ porque considero bem expresso para quem a branquitude é, convenientemente, invisibilizada. Trata-se de um problema racial mal compreendido e com urgente imperativo de avaliação, como mapear a questão da branquitude, se ao atentarmos para sua prerrogativa desloca-se o discurso à mestiçagem da população brasileira? Há a insistência da raça à brasileira, todos/a num grande caldeirão amistoso como se houvesse verdadeiramente democracia racial. Isso, quando nossas problematizações não são colocadas à prova com a apelação científica biológica, mal intencionada, de que toda espécie humana faz parte de uma única raça. A raça humana ou brasileira são proposições sobre as quais nem pretendo delongas.

O que me parece é que o/a brasileiro/a branco/a se sente cada vez mais confortável em considerar a miscigenação, em reconhecer o “pé na senzala” ou “desenterrar a avó preta”, mas isso não ausenta o poder e/ou os privilégios do mesmo. Quero dizer que o racismo não se baseia em genética, em gota de sangue, se reestrutura nas relações do olhar, da estética, da aparência, sobretudo epidérmica. Mas na tentativa de manter uma auréola, é cabível assinalar uma ancestralidade negra ou igualdade de sangue vermelho.

De fato, temos que considerar os desafios ao exame crítico da construção da identidade racial branca. Primeiro, há uma escala de cores de pele determinante às relações raciais, em que em algum nível ocorrem marcadores de fronteira da própria brancura, é quando possivelmente desembocamos na problemática das linhas raciais brasileiras não nítidas; Segundo, por ser a branquitude uma categoria histórica, relacional e com significados socialmente construídos, lidamos com uma variante de acordo com a época e o lugar, assim, uma pessoa branca na Bahia é possivelmente reconhecida parda/negra em São Paulo; terceiro, a abordagem relacional entre classe e raça ainda assume uma confusão não só teórica, mas política. Muitas vezes o branco da quebrada assume sua dose de negão, mas seu privilégio é notório quando comparado ao preto que seja da quebrada ou não. A branquitude não é irrestrita ou incondicional, é perpassada por outras categorias que a estrutura, ora de privilégios, ora de subordinação, contudo, seus méritos raciais são resguardados.

A branquitude é justamente isso, a preservação do poder e/ou privilégio racial mesmo com intersecções de opressões correlatas como de classe, gênero, por orientação sexual ou idade. Ao mesmo tempo que tecemos um quadro de desafios à compreensão do que é ser branco, falamos de um Brasil construído por um esquema epidérmico racial muito bem absorvido pela polícia e compreendida pelos olhares do cotidiano, nem sempre verbalizados, mas que constrange, agride, violenta e põe o outro no seu “devido espaço”. Quando não citadas as ações diretas de estupros, expulsões, surras, assassinatos, de genocídio de uma população que não tem dúvida dos seus insistentes marcadores visuais, consolidados pela tirania do olhar branco. O negro/a sabe que o é. Quem apanha aprende a reconhecer de que mando vem à chicotada. Quem chicoteia sabe muito bem como esconder o chicote, quando precisa.

É válido ressaltar que apenas ao reconhecer e/ou afirma-se branco tal indivíduo não é automaticamente isento de ações racistas, a consciência de raça não é sinônimo de antirracismo. Contudo, a identificação significa a construção de uma via de mão dupla, é então que podemos considerar a branquitude acrítica e a branquitude crítica.

Na medida em que questionamos a supremacia racial e mais ainda quando nos aproximamos de sua desconstrução é que os/a brancos/a se posicionam, seja na tentativa de assegurar seus poderes e ou/ privilégios, seja com uma leitura que desaprove o que está posto. Um dos exemplos notórios que faça valer esta afirmação é o processo de adoção de cotas raciais para o acesso às universidades brasileiras, o que desencadeou seções discursivas polêmicas em torno da questão e deu visibilidade a (in)consciência racial.

O documentário ‘Raça Humana’, produzido pela TV Câmera na Universidade de Brasília, nos apresenta colocações coerentes a esta análise. Davi Lyra, estudante do curso de Engenharia Elétrica, em encontro com os alunos contrários às cotas, afirma: “Eu vim de uma cultura onde a excelência acadêmica era valorizada e que era importante você se destacar, entrei na universidade com o pensamento um pouco nessa linha, quando eu chego à universidade eu vejo que tem na minha sala, a nota de corte do sistema universal foi 180, uma pessoa que entra com 30 no vestibular. Eu fico pensando que essa pessoa que entrou com 30 tirou a vaga de uma garoto que tirou 175”.

Dentre as tantas análises pertinentes a esta colocação, vou me ater ao termo “tirou a vaga”, em que se percebe a conotação de prejuízo ou até mesmo injustiça que é atribuído ao sistema de cotas. O primeiro traço marcante de sua branquitude acrítica é justamente o de defesa do privilégio de seu grupo racial, neste caso, de acordo com um discurso meritocrata.

Em seguida, o mesmo afirma: “Um país em que a maior festa popular é comandada por negros, que é o carnaval, tanto no Rio de Janeiro, como em Salvador, em todos os estados do Brasil, não pode ser considerado um país racista, um país onde os negros tem igualdade de oportunidades, não interessa onde eles estejam, não é um país racista.” Nesse ponto creio que não preciso retomar as discussões sobre as estratégias dos/a brancos/a de reencantar as relações raciais e dizer: está tudo bem, aqui não existe racismo. Bem como não vou me ater ao contra discurso, falar do carnaval racista brasileiro me roubaria linhas à diante. Na verdade, nem sei se devo considerar sua colocação como ofensa ou como piada de mau gosto, mas considero a certeza de que não é nada ingênuo.

Assim traçado, sinteticamente, o perfil da branquitude acrítica, ou seja, os/a brancos/a que, reconhecendo ou não a existência de raça/racismo, acobertam as suas condições de privilégios e adotam mecanismos de defesa e reestruturação da hierarquia das raças mesmo com o falso discurso de igualdade ou mito de democracia racial.

Já sobre os brancos críticos, considera-se àqueles que compreendem as relações raciais, reconhecem suas categorias de poder e/ou privilégios e desenvolvem um discurso racial(izado). Por exemplo, o ator Pedro Cardoso revela sua criticidade ao ser entrevistado por Lázaro Ramos, então apresentador do Programa Espelho. O entrevistado afirma a importância das cotas raciais para gerar igualdade na sociedade brasileira, afirmando: “não dá pra dizer que eu com essa história branquinha parto do mesmo lugar que um menino que nasce na favela vindo com essa história de escravidão que tem no Brasil, não dá pra dizer que minhas filhas e ele estão tendo a mesma oportunidade na vida, esse cara tem 350 anos de opressão, de humilhação, de ofensa”. Este sujeito fala de um lugar e este lugar tem demarcações históricas pertinentes às diferenciações raciais.

Lourenço Cardoso, quando traça a relação entre o posicionamento crítico ou acrítico do/a branco/a, aponta a possibilidade de distinção enquanto pretensão da linha de estudos da branquitude em categorizar as formas de manifestação racista. Mas sugiro ainda que avaliemos uma terceira postura, a qual não cabe apenas a criticidade e o discurso público, mas estas atreladas a um posicionamento, uma prática, que deveras ser condizente à transformação deste modelo sócio-racial. Trato dos/a aliados/a à luta antirracista, dos que, de maneira efetiva, desconstrói o seu legado de soberania racial no próprio cotidiano e que participa do desafio de forjar, verdadeiramente, a democracia racial brasileira.

Nesse sentido, cabe justificar o verdadeiro interesse no entendimento da branquitude, de analisar privilégios, concepções, posicionamentos de um grupo que nota-se heterogêneo. É na tentativa não só de auto-conhecimento, mas na busca de uma resposta que, acertadamente, não se trata apenas de um compromisso intelectual. Reconhecido o racismo e compreendido a construção de mulher branca, quais as alternativas a esse discurso? Quais os limites e possibilidades? Qual o papel do/a branco/a crítico/a aliado/a a luta anti-racista?

“Fique registrado que muitos brancos íntegros são ofuscados pela maligna fosforescência da “democracia racial” e se comportam diante da população negra da maneira tradicional do racista brasileiro: com postura paternalista”.

Abdias Nascimento, O quilombismo

Escrito por: Joyce Souza Lopes

Membro do Núcleo de Negras e Negros Estudantes – UFRB

Estudante do curso de Serviço Social – UFRB

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