Não é sobre competência. É que você é preto

23/10/25
Folha de São Paulo, por Michael França
  • As evidências científicas teimam em mostrar discriminação
  • Algo que os ignorantes insistem em tentar calar

Pedro C. Sant’Anna hoje está fazendo seu PhD no MIT, nos Estados Unidos. Porém, antes de sair do Brasil, ele desenvolveu, juntamente com Nicolás Ajzenman e Bruno Ferman, na EAESP-FGV, uma interessante pesquisa que foi publicada recentemente na American Economic Review: Insights. A ideia inicial é simples: criar perfis falsos no X (antigo Twitter), simulando doutorandos em economia e observar quem a comunidade acadêmica formada por economistas escolhia seguir de volta.

Os perfis foram criados para diferir apenas em três aspectos: gênero (definido por nomes e fotos geradas por inteligência artificial), raça (negro ou branco, visível nas imagens de perfil) e universidade (de alta ou baixa reputação acadêmica). No final, o experimento terminou com um retrato constrangedor para os economistas.

Estudantes brancos receberam 12% mais seguidores do que estudantes negros. A disparidade racial persiste mesmo entre estudantes de instituições de primeira linha. Contudo, homens negros de universidades menos prestigiadas tiveram a menor taxa de retorno, com apenas 14%. Já as mulheres brancas de escolas de elite, curiosamente, não tiveram dificuldades em serem seguidas de volta e apresentaram a maior taxa de retorno de seguidores.

Ou seja, o experimento mostra que basta ter um rosto negro para reduzir as chances de um jovem pesquisador ser reconhecido por seus pares. O que dirá então de ser contratado e promovido? Bem, estudos de correspondência seguem um roteiro semelhante. Currículos idênticos enviados a empresas produzem resultados distintos dependendo da raça presumida pelo nome ou pela foto do candidato. No caso americano, nomes que são mais usados pela população branca recebem mais retornos, enquanto os nomes negros são ignorados.

Em outras palavras, temos o mesmo currículo, temos a mesma competência, mas também temos uma cor de pele que teima em ditar quem vai ter vantagem e quem vai pagar mais um custo por ter nascido preto, apesar de todos os esforços feitos para se qualificar e chegar até ali.

Embora esses estudos por correspondência tenham sido realizados primeiramente nos EUA, uma série de outras pesquisas semelhantes realizadas em outros países tem chegado ao mesmo resultado. E quando experimentos, que consistem no padrão ouro das pesquisas de inferência causal, não podem ser realizados, análises estatísticas, levando em consideração fatores como educação e outras características observáveis, ajudam a reforçar o argumento de que os negros são discriminados tanto no mercado de trabalho quanto em outros domínios da vida pública.

Desse modo, o que nós temos é que, a cada pesquisa nova, um velho fato inconveniente se reafirma. O fato de que ser negro é carregar o ônus de uma dúvida permanente sobre seu valor e competência. E o fato de que muitos daqueles que ganharam na loteria do nascimento seguem sendo presumidos competentes, embora apenas uma parte realmente o seja.

No fim, é por isso que sigo escrevendo e pesquisando sobre isso. Porque, no fundo, acho um grande barato que a ciência insiste em mostrar o que muitos ignorantes teimam em tentar calar.


O texto é uma homenagem à música “Sorriso Negro”, interpretada por Dona Ivone Lara.

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Michael França – Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

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