Não é sobre o Oscar, nem sobre uma corrida de 15km com ótimo pace

Passamos pela premiação do Oscar sem nenhuma menção direta aos incêndios de Los Angeles. Acho que, em momentos difíceis, o público valoriza o escapismo — e a audácia, a estética açucarada e o horror corporal ridículo nos oferecem algum alívio da tempestade (ou dos incêndios). Ainda assim, as narrativas que se desenrolam na maioria dos filmes indicados este ano são estranhamente dóceis e desconectadas da crise existencial que estamos vivendo.

Calma, não vou falar sobre a 97ª edição do Oscar e o capitalismo selvagem estampado em cada roupa ecologicamente incorreta para dar pinta no tapete vermelho, nem sobre a falta de noção dos Estados Unidos da América. Eu assisti, me emocionei com o prêmio de Ainda estou aqui, ri horrores com Selton Mello e Fernanda Torres e, especialmente, com o brega Joga no coroa tocando enquanto imagens do Walter Salles bonitão apareciam em memes de nossas centenas de redes sociais. Tudo certo, tô dentro da piada.

Na real, comecei esse texto na terça-feira de Carnaval pensando sobre a crise climática, o direito das pessoas e aquele outro meme: “deixa as pessoas, caramba”.

Tenho feito reflexões no meu Instagram (ainda dá para chamar o Instagram de rede social pessoal? Não, né?) sobre atividade física e qualidade de vida. Como me exercitar está mudando a minha vida, o meu corpo e o jeito como eu tenho feito escolhas diárias de rotina e suado por aí. 

Não sou exemplo de nada. Quero começar dizendo isso, para não se inspirarem em mim, porque eu não me inspiro em nenhuma influencer, em ninguém. Minhas motivações são meus exames médicos e uma vontade absurda de voltar a fazer trilhas longas, como eu fazia de havaianas na minha adolescência (não farei mais isso, não façam também). E tô a fim de viver mais, basicamente para assistir o fim da humanidade de mãos dadas com a minha galera. 

Agora vou falar sobre o capitalismo, com licença

A minha atual pira é pensar nessa multidão de gente fazendo atividade física. Acho maravilhoso, não é uma reclamação. Juro que eu também faço foto de “tá pago”. Mas olha a loucura que virou a procura por tipos de whey, roupas e tênis caríssimos para correr. Você só faz atividade física bem-equipado de grandes marcas.

Os valores gastos com o exercício físico para performance individual nas redes sociais é imenso. Isso além do reforço de privilégios individuais que acontece quando a atividade física é constantemente relacionada a hábitos de consumo pouco acessíveis, em vez de ser tratada como parte de um pilar social básico: o direito à saúde.

Pensa num parque público, sem exposição de grandes marcas que te incentivem a consumir, em praças com equipamentos em bom estado para práticas esportivas, em mais orientações do SUS sobre exercícios físicos, em espaços de lazer, cultura, incentivo à atividade física na educação.

Quanto você gasta para fazer uma caminhada no seu bairro? Não precisa comprar um tênis de mola e amortecedor feito na China, relaxa. 

Tudo isso faz parte desse nosso direito à saúde e precisa ser política pública, além de ser mais um exemplo de adaptação às mudanças climáticas. A relação entre atividade física, espaços de lazer públicos e áreas verdes que ajudam a mitigar as mudanças climáticas parece inimaginável, mas não é. 

As pessoas precisam estar em constante contato com opções que as incentivam a buscar qualidade de vida. Elas têm o direito a ruas arborizadas e espaços para desafogar a rotina de horas de transporte público.

Acontece que nosso corpo não está adaptado às mudanças climáticas, nosso bairro não está adaptado, e os gestores públicos não acreditam em qualidade de vida como base para sua atuação nas cidades. Morar bem e ter saúde, comida e cultura deveria ser nosso ponto de partida para acabar com as desigualdades sociais neste país.

Esse texto não é sobre o Oscar ou sobre correr 15km com um pace maravilhoso – mesmo eu ainda não sabendo direito o que significa pace maravilhoso. Esse texto é sobre a coragem de falar o óbvio e mais que isso, falar sobre desigualdade. Não estamos no mesmo barco e nunca estaremos, se o processo de busca do bem-estar for centrado no indivíduo e seus privilégios A gente se encolhe e se perde nessa busca apenas de si, sem o outro.

Felizmente, eu sou do time da ministra Marina Silva e acho que não devemos ser nem otimistas, nem pessimistas, devemos ser persistentes com os desafios do nosso tempo.


Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).

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