‘Não foi minha culpa’: mulheres no México lutam contra a violência

Nova geração de mulheres mexicanas foi às ruas nos últimos meses para banir a idéia de que, de alguma forma, elas provocam a violência que sofrem

Por Paulina Villegas e Elisabeth Malkin, do New York Times, no Celina

Manifestantes no bairro de Roma, na Cidade do México, reproduzem a performance “Um violador no seu caminho”, que se tornou um hino internacional da nova onda de ativismo feminista (Foto: Toya Sarno Jordan / The New York Times)

Itan Flores era uma jovem adolescente quando seu primeiro namorado a encarcerou por seis semanas em um quarto mobiliado com apenas um colchão e um rádio. Ele voltou apenas para estuprá-la, muitas vezes escondendo comida e água.

Flores escapou quando o então namorado esqueceu de trancar a porta um dia. Ele disse a Flores que, se ela algum dia denunciar o que aconteceu para a polícia ou contar aos seus pais, que pensavam que ela havia ido voluntariamente, ele mataria sua família.

— Até hoje, meus pais não sabem que eu era prisioneira — disse Flores, 24 anos, com os olhos cheios de lágrimas — Durante muito tempo, pensei que tudo era minha culpa.

Veja mais: Por que é tão difícil identificar um relacionamento abusivo e sair dele?

Uma nova geração de mulheres mexicanas foi às ruas nos últimos meses para banir a idéia de que de alguma forma — por causa de suas roupas, comportamento ou por onde circulam — elas provocam a violência que sofrem. Uma atitude tão arraigada na sociedade que se estende à polícia e aos tribunais.

A raiva que está surgindo no México se espalha por grande parte da América Latina, onde o machismo é comum, e os agentes da lei e as autoridades podem ser passivos, cúmplices ou, em alguns casos, até abusivos com as mulheres que tentam denuncia-lo.

Os protestos das mulheres no México foram estridentes e às vezes violentos. As manifestantes quebraram pontos de ônibus e quebraram as janelas de delegacias. Algumas pintaram grafites em monumentos e jogaram glitter roxo em policiais.

No final de novembro, as mulheres encheram a gigantesca praça central da Cidade do México para tocar uma música de um coletivo de mulheres chilenas que primeiro varreu os países latinos e depois se espalhou para países como Tunísia e Turquia. Desde então, grupos de mulheres repetiram a performance nas universidades, nas ruas ou em eventos como a Feira Internacional do Livro de Guadalajara.

“E a culpa não é minha / nem de onde estava / ou de como me vestia”, diz o refrão do canto, chamado “O violador em seu caminho”.

Violência de gênero

A América Latina é o lar de alguns dos países com as maiores taxas de homicídios do mundo, de acordo com a Small Arms Survey, que rastreia a violência globalmente. Em toda a região, à medida que a coleta de dados melhorou, o fenômeno da violência de gênero está sendo reconhecido e melhor compreendido.

Uma em cada três mulheres na América Latina sofreu violência sexual ou física, segundo as Nações Unidas, mas 98% dos assassinatos por gênero na região não são processados.

Embora a violência contra homens e mulheres tenha atingido níveis recordes no México, analistas dizem que muitas das mortes violentas de mulheres são feminicídios, crimes nos quais as vítimas foram alvo por causa de seu gênero.

E o número de mulheres que morrem violentamente no México está aumentando: subiu para 10 assassinatos por dia este ano, de sete por dia há apenas dois anos, segundo o escritório da ONU Mulheres no México.

O crescente poder do crime organizado também é um fator no aumento de ataques a mulheres, disse Belén Sanz, representante do México para a ONU Mulheres, apontando para um aumento no tráfico sexual e nos desaparecimentos que, segundo ela, provavelmente estavam ligados a gangues.

— Há um problema de violência contra as mulheres que, sem dúvida, está relacionado ao continuum da violência em geral, mas você não pode entender o feminicídio sem analisar a quantidade de abuso sexual e doméstico — disse.

O que o México e outros países da região estão vendo agora é uma nova geração que conhece seus direitos e aprendeu a lutar por eles, disse Lourdes Barrera, membro do Las Luchadoras, coletivo feminista da Cidade do México.

— Existe um grande conflito entre o que eles aprenderam e a realidade no México: o assédio que sofrem nas ruas, a violência de seus parceiros, a violência que você vê todos os dias — afirmou.

O vigor dos protestos femininos pegou as autoridades mexicanas desprevenidas. Depois que um protesto contra o abuso sexual da polícia ocuparam a Cidade do México em agosto, a prefeita Claudia Sheinbaum condenou as manifestantes por danificarem o Anjo da Independência – uma estátua que é um dos marcos mais famosos da cidade – e pediu uma investigação.

Diante das críticas, Sheinbaum rapidamente recuou e se encontrou com grupos de mulheres. No final de novembro, ela prometeu criar um registro de criminosos sexuais com um banco de dados de DNA e aprovou uma lei na cidade que torna o compartilhamento de conteúdo sexual não autorizado um crime com pena de prisão de seis anos.

Mas a luta na capital encontra pouco eco na periferia da cidade. Em Ecatepec, um subúrbio da classe trabalhadora, as mulheres dizem que a polícia não as protege e, às vezes, é a agressora.

— Viver aqui significa ser forçado a sobreviver — disse Flores, a mulher que afirmou ter sido sequestrada pelo namorado na adolescência — Significa estar sempre alerta, sempre vigiando por cima do ombro. Significa ser totalmente paranóica.

Forçadas a se defender, as mulheres estão formando grupos para exigir justiça por crimes não resolvidos, questionar atitudes antigas e forçar o governo a agir.

Mulheres da periferia formam rede para se proteger

Flores se juntou a outras cinco mulheres – incluindo Magda Soberanes, 28, agredida por seu parceiro e acabou no hospital – para criar um coletivo chamado Mulheres da Periferia para a Periferia.

Quando se encontraram com o prefeito de Ecatepec no início do ano passado, ele disse que não havia fundos para proteger as mulheres. E quando procuraram a agência de mulheres da Ecatepec para falar sobre o número de mulheres desaparecidas na área, o diretor desconsiderou os relatórios, disse Soberanes.

Grisel Barrientos, diretor da agência, disse em uma entrevista que documentou casos de desaparecimentos no Ecatepec e que a maioria deles envolve mulheres que mais tarde foram encontradas por conta própria.

Encarando esses obstáculos, as mulheres da região fazem o que podem para se proteger. Eles trocam mensagens do WhatsApp e compartilham sua localização durante os deslocamentos. Carregam apitos, spray de pimenta e lápis afiados, caso sejam atacadas. Muitas vestem calças para usar o transporte público depois do anoitecer e certamente ficam alertas.

— É impensável adormecer no ônibus, não importa quanto tempo durar o trajeto. Esse é o privilégio de um homem — disse Lucía Camacho, outra integrante do grupo de mulheres.

O grupo organiza aulas de autodefesa com um instrutor de karatê e realiza apresentações artísticas para destacar como a impunidade persiste.

Recentemente, diante de uma platéia de estudantes de criminologia, quatro delas vestiram túnicas pretas cobertas com as frases que os homens dizem quando as assediam nas ruas. Imaginando as vozes das vítimas, eles descreveram assassinatos que ficaram impunes.

— Essas jovens estão saindo às ruas para reivindicar sua dignidade e estão nos ensinando grandes lições — afirmou Eréndira Cruz, uma investigadora especial sobre questões femininas na Comissão Nacional de Direitos Humanos no México — Diante do desespero, eles representam uma esperança profunda.

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