“Não me prostituo por dinheiro”, diz travesti com diploma da Unicamp

Travesti. Prostituta. Doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP. Amara Moira abre a porta do apartamento na zona sul de São Paulo em que mora com a namorada, uma professora de letras. São nove da manhã e tenho certeza de que ela acabou de acordar. Alta, os cabelos cacheados, um vestido leve estampado, os traços afinados por hormônios, o rosto lisinho graças à depilação a laser. Seus gatos miam passando entre minhas pernas. Não deixo de reparar na quantidade de livros em sua sala – uma obra de Michel Foucault, teórico da sexualidade, repousa ao lado do notebook. Amara parece tímida, fala baixinho, gesticula delicadamente. Aos 31 anos, expõe de forma ultra articulada sua transição: nasceu com pênis, esforçou-se a vida inteira para “ser o menino” que esperavam que fosse, assumiu há dois anos sua transexualidade, entrou para a militância de cabeça e acaba de ser convidada pelo PSOL para sair como vereadora de Campinas nas próximas eleições.

Por Nathalia Ziemkiewicz Do Yahoo

Depois de ler esta longa entrevista, você poderá discordar de cada uma das opiniões de Amara, mas não terá como negar sua inteligência. Eu mesma não a conhecia pessoalmente. Nosso encontro acontece semanas antes do debate “Sexo em tempos de feminismo” que será realizado dia 27/04, em São Paulo, pela Revista Azmina (o ingresso custa R$ 50 e ajuda na vaquinha virtual que vai bancar reportagens de peso). Amara Moira, Djamila Ribeiro, Maria Angélica Alcides e eu encaramos esse desafio. Mas estou quase declinando por insuficiência de intelecto diante dessas mulheres (risos)! Transexualidade e prostituição, pautas da entrevista a seguir, são apenas dois dos temas polêmicos e espinhentos que vamos abordar no debate. E Amara derruba muitos estigmas ao tratar deles com franqueza.

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O debate de que Amara e eu faremos parte acontece dia 27 de abril, em São Paulo (Divulgação / Azmina)

– Você se considera transexual, travesti ou prefere não entrar em nenhuma “caixinha”?
AMARA – Mais do que tentar definir o que é uma travesti e o que é uma trans, gosto de pensar os sentidos que estão atrelados às duas palavras. Travesti está associada à prostituição, marginalização, exclusão de direitos, evasão escolar. Transexual já é mais aceita, “limpinha”, o jornal trata como “a mulher trans” (enquanto diz “o” travesti). A diferenciação tem muito mais a ver com uma questão de classes sociais. Prefiro me colocar como travesti, embora o grupo de travestis no qual me referencio muitas vezes me considere trans porque não fiz intervenções corporais como silicone, porque escolhi me prostituir e não tenho na prostituição a minha fonte de renda principal. Mas me defino assim para derrubar estigmas, pensar uma nova ideia de travestis que tem acesso aos estudos, apoio familiar… Sou de uma classe média ascendente: meus pais foram os primeiros da família a fazer faculdade, moram num bom bairro em Campinas, eu sou a primeira a fazer doutorado.

– Em tese, costuma-se dizer que a transexual tem ojeriza ao genital com que nasceu e a travesti, não. Essa seria a diferença entre os dois conceitos. Você concorda?
AMARA – Discordo bastante. Isso reduz uma identidade sexual pela relação que a pessoa tem com o próprio corpo. E essa relação com o corpo é construída na sociedade. Por exemplo, dez anos atrás, para conseguir qualquer correção em documentos como um RG ou inserção social, você tinha que passar pela cirurgia de redesignação sexual [popularmente conhecida como “mudança de sexo”]. As pessoas trans depositavam muita expectativa nessa cirurgia mesmo não sentindo tanta ojeriza ao próprio genital, entende? Todas tentavam entrar na fila porque essa era a única forma de conseguir alterar os documentos, o que resolve uma porrada de problemas. Se você tem uma aparência feminina, se apresenta como Joana e o papel referenda que você é Joana… Você consegue bancar essa identidade. Quanto mais desburocratizada fica essa questão, mais conseguimos garantir às pessoas trans acesso à cidadania, mais vamos pensar na transexualidade para além da repulsa ao genital de origem. Nem todas querem se submeter a uma cirurgia altamente invasiva.

– Quando percebeu que não atendia ao que a sociedade esperava de você?
AMARA – Não foi uma coisa óbvia, fácil, do tipo “lembro que naquele dia me olhei no espelho e descobri”. Quando entendi que tinha algo errado comigo, percebi como eu sempre me esforcei para me encaixar num papel masculino. E esse esforço me blindou de me enxergar como eu era de verdade. Aos 18 anos, me dei conta de que não sou o homem que me criaram para ser e tudo desmoronou. Imaginava que, só depois de passar num concurso público e virar professora universitária, poderia me assumir sem medo de passar por todo o processo de exclusão social que costumam viver as travestis. Eu tentei jogar esse jogo, mas não consegui esperar tanto tempo. Assim que consegui a bolsa de doutorado na Unicamp [R$ 2 mil por mês], tive autonomia financeira e comecei minha transição. Dois anos atrás, pedi pela primeira vez que me chamassem pelo nome Amara. Eu não tinha muita certeza de nada, queria descobrir vivendo, dia após dia, aonde eu queria chegar.

– Mas você não vivia isso secretamente há mais tempo? Não se vestia como mulher, por exemplo, quando estava sozinha?

AMARA – Três anos e meio atrás, comprei hormônios femininos e sem orientação médica – não tinha muita ideia do que tava fazendo, achava que meu corpo ia mudar e eu chegaria para a família avisando que já era trans. Não contei para ninguém, não tinha com quem desabafar. Fui numa loja de departamento e comprei várias roupas de mulher, escondi no meu armário. Quando meus pais saíam de casa, eu vestia, brincava de fazer as unhas… Depois de duas semanas de doses cavalares de hormônio, me deu um pânico e eu só chorava pensando que poderia perder toda a vida que tinha construído até então. Joguei tudo no lixo. Procurei uma psicóloga para “me curar” e e ela foi fundamental em me ajudar a perceber que não era eu o problema. No carnaval de 2014, coloquei uma roupa feminina, saí em público como Amara pela primeira vez, na brincadeira, e aquilo me perturbou de um jeito que precisei me vestir assim nos outros dias do carnaval. Senti uma leveza e uma liberdade tão grandes. Eu namorava há quatro anos uma menina e ela se incomodou, percebia que tinha algo esquisito ali. Uma semana depois, estava num ato pelo Dia da Mulher também vestido daquela forma e fui de lá para um almoço de família. Todo mundo achava que era só uma brincadeira, continuação do carnaval, então brincavam de me chamar de Amara. Entrei na militância LGBT da faculdade, fui caçando um espaço pra mim, na época apenas como bissexual, e descobri que havia um grupo de pessoas que me apoiariam mesmo sem saber de nada ainda. Comecei a me sentir à vontade, voltei a tomar os hormônios, só que dessa vez sabia o que aconteceria com meu corpo.

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