‘Não me sinto em casa’: denúncia de racismo de jovem engenheiro sacode Twitter na França

O jovem engenheiro de informática, Redouane, de 27 anos, decidiu contar porque havia decidido deixar seu país natal, a França, e se instalar na Espanha. O que ele não esperava é que seu testemunho encontrasse eco em centenas de internautas, que reagiram positivamente.

Do G1

O jovem Redouane, que denunciou o racismo contra filhos de imigrantes na França (Foto: Reprodução/Twitter)

Tudo começou com um desabafo, ou um “thread”, como são chamadas as discussões em torno de um assunto no Twitter. O jovem engenheiro de informática, Redouane, de 27 anos, decidiu contar porque havia decidido deixar seu país natal, a França, e se instalar na Espanha.

O que ele não esperava é que seu testemunho encontrasse eco em centenas de internautas, que reagiram positivamente. O caso acabou virando matéria neste sábado (8) no site de FranceInfo.

“Pelo telefone, ouvimos um bebê chorando”, conta a reportagem francesa. Com sua esposa e filho, Redouane, 27 anos, desfaz as malas em Madri, para onde acaba de se mudar. Uma decisão radical, mas cuidadosa, como ele explicou em seu Twitter em uma longa conversa, compartilhada por 1.700 pessoas. Redoune é francês, nascido e criado na França, de pai argelino e mãe italiana.

Com feições “margrebinas” (de países do norte da África, como Marrocos, Argélia e Tunísia), e praticante da religião muçulmana, ele conta como foi seguidamente discriminado em seu próprio país, até decidir partir definitivamente.

“Quantos há como ele na França? ”, questiona FranceInfo. Difícil saber, mas Redouane teve muito retorno dos internautas a seu desabafo. Entre eles, o de Karim, também de 27 anos, que declarou que poderia ele mesmo ter escrito “aquele depoimento”, porque ele se “reconheceu completamente nas palavras de Redouane”.

Em 2013, 198.000 pessoas nascidas na França deixaram o país. Um aumento de 25% em relação a 2011.

Perseguido pelos vigias da livraria
“Como esse mal-estar começou antes de chegar ao ponto de deixar tudo? ”, pergunta o site francês. Aos 14 anos, quando, explica Redouane, ele foi seguido “prateleira após prateleira” pelos vigias de uma livraria? “Ou, talvez, aos 15 anos, quando ele foi impedido de entrar na Euralille, o novo centro comercial da capital flamenga”.

“Foi a partir desse momento que me senti uma divisão entre a identidade que eu pensava encarnar e aquilo que eu realmente refletia nas pessoas”, analisa Redouane.

A experiência do racismo cotidiano – “pequenas coisas que não são sérias, mas que se acumulam” – deram novo rumo a Redouane. “Quando você se vê voltando pra casa como um idiota porque você foi impedido de entrar numa boate, é super demotivante; eu só consegui entrar numa uma vez: porque era cedo e os caras foram legais”, diz ele.

Enquanto seus amigos compartilham “experiências comuns, que os fazem ter coisas para compartilhar uns com os outros”, ele começa a se “afastar do grupo”.

Ninguém acreditava que pudesse se tornar engenheiro
E a orientação escolar do jovem, quando decidiu seguir um diploma científico? “Eu via a surpresa aos olhos dos meus interlocutores, como se esperassem que eu acrescentasse a qualquer momento que era uma brincadeira, e que iria tentar um diploma de técnico mecânico. Como se a Ciência fosse incompatível com a pessoa que eu era”, diz Redouane.

“Adicione a isso as observações de alguns professores”, conta FranceInfo. “Qual o nome dele? Mohammed? Uh, Mouloud? Uh, Redouane?”. “Obviamente, esse tipo de comentário não seria feito em relação a Thomas e Benjamin… O que me incomoda é a diferença de tratamento”, observa ele. O site francês lembra também que suas história revela a internalização do estigma do racismo.

“Quando eu percebi que eu não demonstrava os mesmos reflexos com uma criança bem vestida e outra pobre, eu entendi que estava reproduzindo o que eu tinha vivido, então o racismo é algo que está ancorado na sociedade”, disse Redouane. Uma interiorização que nada tem de “extraordinário” para o presidente da SOS Racisme, entrevistado por FranceInfo.

“É uma maneira de repelir o estigma que se percebe sobre si mesmo, e também um mecanismo que permite dizer inconscientemente ‘Eu não sou como esses jovens, integre-me, veja, eu os odeio tanto quanto você “, disse Dominique Sopo.

Veja trechos do depoimento de Redouane no Twitter:

“Depois de semanas de dúvidas, meses de reflexão, anos de mal-estar, tensões internas e frustração, tomei recentemente uma forte decisão: deixar meu país, a França, por outros horizontes. ”

“Depois de 27 anos passados aqui quase continuamente, depois de obter um diploma de engenharia em alta tecnologia e ter a chance de entrar no mercado de trabalho da melhor maneira possível, chegou a hora. ”

“Eu deixo para trás quase tudo que eu tenho: minha família, meus amigos, meus colegas, minhas memórias, minhas referências … Antes de partir, eu quero tentar colocar em palavras o que me empurrou a fazer essa escolha. ”

“Eu tenho, durante muito tempo, a sensação de simplesmente não ter (mais?) meu lugar na França, ou mesmo de ter me tornado indesejável, um pouco como um convidado que fica mais do que o previsto na sua casa e com quem se fica pouco à vontade”.

“Esse sentimento piorou ano após ano até se tornar insuportável hoje. O sentimento de não me sentir um cidadão normal.”

“Ser alvo de tratamentos, reações, olhares que me deixem desconfortável e criam uma atmosfera pesada na qual eu sufoco.”

“Hoje, estudos mostram que, como jovem francês nascido de imigrantes, tenho 20 vezes mais chances de ser controlado pela polícia por causa da minha aparência física do que outra pessoa;”

“4 vezes menos probabilidade de ser chamado após uma candidatura de trabalho por causa do meu nome; 37% dos franceses pensam que eu não sou realmente francês por causa das minhas origens e 60% consideram que eu represento, pela minha religião, uma ameaça para a República.”

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