Negra e grávida: ainda mais invisível

As discussões sobre humanização do parto e nascimento eram praticamente novidade total para mim quando me descobri grávida, em janeiro de 2011. Apesar de não ter muita informação, de cara eu já sabia que queria que meu filho ou filha viesse ao mundo por parto normal. Mal sabia eu a luta que precisaria enfrentar para que isso fosse possível.

A realidade dos atendimentos nos serviços de saúde não é animadora de um modo geral, e o quadro piora quando se trata de atendimento a mulheres negras. De acordo com Alaerte Martins (2000), as mulheres negras tem 7,4 vezes mais chances de morrer antes, durante ou pouco tempo após o parto, do que mulheres brancas. Além de doenças pré-existentes e falta de acesso a serviços de saúde, o atendimento prestado às muheres negras pode ajudar a explicar esses números.

Eu comecei a me deparar com este tipo de atendimento quando, ao sofrer um sangramento, com apenas cinco semanas de gestação, imaginei, como a maioria das mulheres em início de gravidez, que aquilo significava que eu estava perdendo o filho que tinha acabado de descobrir que teria. Corri com a minha mãe para a emergência de um hospital particular de Brasília, demorei muito para ser atendida e, quando conseguimos realizar uma ecografia, o técnico responsável pelo exame, que foi grosseiro desde o início do atendimento, me disse: “Não tem NADA aí dentro de você.”

Não sei dizer exatamente o que me fez ficar calma naquele momento. Perguntei pra ele se eu havia perdido meu filho e ele disse, sem olhar nos meus olhos, que eu nunca havia estado grávida. Algo me dizia que eu deveria desconsiderar as palavras daquele homem. Me vesti e fui para o consultório do obstetra que me acompanhava, sem saber direito o que pensar. “Durante a consulta, o médico me disse para ficar calma e fazer exames de sangue nos próximos dias, se as taxas que indicam a gravidez continuassem subindo, eu estava grávida, senão, não.”

Realizei os tais exames, a gravidez se desenvolveu muito bem. As consultas com o médico eram sempre tranquilizadoras e práticas, como eu achava que gostava. Mas sempre me colocavam num lugar de coadjuvante da gravidez. O que interessava era o bem estar do bebê e quem sabia tudo o que eu deveria fazer, era o médico.

Já aos nove meses de gravidez, esperando Malik chegar a qualquer momento, tive uma infecção urinária. Fui a uma emergência para conseguir tratar a infecção o mais rápido possível para que não fosse necessário cair numa cesariana por conta disso. Fui atendida por uma médica, que mais uma vez não olhou no meu rosto. Me fez perguntas sobre porque estava ali, eu disse que estava com cistite. Ela disse com um tom irônico (sem me olhar): como você sabe? Eu respondi que já tinha tido isso anteriormente, solicitei o exame e saí da sala. Quando voltei com o resultado do exame, ela me passou um antibiótico fortíssimo, que eu tinha certeza que não poderia tomar estando grávida. E questionei: “Doutora, mulheres grávidas podem tomar esse medicamento?” e ela disse: “Você não me disse em momento nenhum que estava grávida”. Não sei se vocês vão concordar comigo, mas eu achei que com uma barriga dessas, não seria necessário avisar que estava grávida.

Naquele momento não consegui nem questionar a médica. Apenas disse que achei que minha gravidez era evidente tomei a receita da mão dela e saí totalmente revoltada do consultório. Tudo o que já tinha ouvido falar, lido, escutado e vivido na minha trajetória como mulher negra militante veio com toda força. Até que ponto conseguimos ser invisibilizadas mesmo com uma barriga deste tamanho? O que me tornou tão invisível? Chorei. Primeiro por passar por isso a essa altura e perceber que a minha vida e a do meu filho não valem nada na mão de pessoas que supostamente deveriam cuidar da nossa saúde, e depois porque não consegui reagir, não consegui me defender e nem defender meu filho desse racismo atroz contra o qual eu decidi dedicar a minha vida.

Algumas semanas depois, chegou o momento de Malik nascer. Eu tinha feito muitos exercícios, caminhada, subi e desci ladeiras. Já estávamos com 40 semanas e 3 dias de intimidade e eu morrendo de ansiedade para conhecê-lo e sofrendo os “avisos” do médico de que ele não deixaria a gravidez passar de 41 semanas (a OMS orienta que uma gestação normal pode chegar até 42 semanas sem risco para mãe e bebê).
Chegou o dia da consulta, o médico estava operando algumas mães para tirar os filhos dela via cesariana, e iria se atrasar. Fui então, para o hospital que tinha uma propaganda de humanização. O site mostrava salas com bolas, música ambiente, banqueta, um monte coisas. Corri pra lá. Fui atendida por uma médica plantonista, que fez um detestável exame de toque e me disse que eu estava com 4 centímetros de dilatação, mas que eu tinha que chamar meu médico, porque meu filho não poderia nascer naquele hospital, já que ela não ia deixar de atender 18 pessoas no plantão só para fazer UM parto. E que se fosse realmente necessário eu ter meu filho ali, ela iria me submeter a uma cesariana porque não poderia ficar esperando.

Saí, mais uma vez, indignada do hospital. Meu filho nasceu algumas horas depois, num parto muito diferente do que eu havia imaginado pra gente, mas, imagino, melhor do que o que poderia ter acontecido, com o auxílio do médico que acompanhou a gestação inteira, mas que imaginei que não estaria presente no momento do parto. Enquanto sentia a ocitocina sintética nas minhas veias e quase perdi o controle da situação, respirei fundo e conversei com Malik sobre como o momento que tanto esperávamos havia chegado. Não poderia permitir que as intervenções naquele momento fossem mais fortes e importantes do que o nascimento do meu filho e o meu nascimento como mãe. Respirei fundo, e enquanto sentia o meu corpo se mobilizando para o encontro de Malik com este mundo. Quando ele nasceu, olhando tudo e chorando forte, veio para os meus braços, nos olhamos e conversamos. Naquele momento, renasceu em mim toda a força e desejo de transformação possível. Com todo o medo e a responsabilidade de criar uma criança negra no Brasil, mas com a certeza de que eu e outras companheiras podemos transformar o mundo ao nosso redor, por nós e pelas que vieram antes de nós, por todos os meios necessários.

Por: Raíssa Gomes
Raíssa Gomes é jornalista e faz parte do coletivo Pretas Candangas (pretascandangas.wordpress.com). E-mail: [email protected]

 

 

Fonte:  Blogueiras Negras

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