A negritude e o universal africano

Os múltiplos significados do conceito de “negritude” vistos pelas lentes de três grandes escritores: Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Wole Soyinka.

Por Adriano Migliavacca, do Estadão 

O termo “negritude” se popularizou de tal forma no vocabulário brasileiro que acabamos esquecendo que, em seu sentido original, ele ocupa uma posição central em um importante debate filosófico e ideológico do século XX. O fato é que a palavra é daquelas cujo significado é dedutível a partir de sua própria sonoridade: a condição de ser negro ou o sentimento de pertença a esse grupo.

Esse significado não é nem equivocado nem impreciso, mas se encontra na superfície do debate a partir do qual se originou – debate que envolveu, ao longo do século XX, diversos intelectuais da África subsaariana e da América, tendo dois contendores proeminentes nas figuras dos poetas senegalês Léopold Sédar Senghor e nigeriano Wole Soyinka, primeiro africano a receber o Prêmio Nobel de Literatura e que este ano virá ao Brasil para uma participação na Feira do Livro em Porto Alegre. O vocábulo surge pela primeira vez no poema narrativo de Aimé Césaire Cahier d’un Retour au Pays Natal; Senghor veio a dar-lhe seu tutano filosófico: haveria, segundo o poeta senegalês, uma natureza própria ao negro-africano, quer em sua individualidade quer em sua comunidade, algo que o diferenciaria dos membros de outras coletividades humanas. Essa natureza se caracterizaria por um modo de perceber o mundo em que sujeito e objeto não se distinguem, um estado de fusão com a natureza em que a síntese se sobrepõe à análise e a razão intuitiva se sobrepõe à discursiva, resultando em uma atitude de grande intensidade emocional, algo que Senghor resumiria em seu famoso dito “A emoção é negra, como a razão é helênica”.

A essa natureza diferenciada se deveria a conformação e os atributos das sociedades, das instituições e das artes dos povos negro-africanos. A sociedade africana seria formada por círculos concêntricos, tendo em seu núcleo a organização familiar; a partir dela se deduzem as linhagens, os clãs, os reinos. A mesma organicidade que se vê na sociedade funda as artes e as relações entre elas, cuja natureza sincrética impede sua diferenciação completa. A palavra da poesia é cantada e se articula aos movimentos da dança, é projetada sobre a madeira, o barro ou o metal e se torna escultura. Todas as artes teriam como base o ritmo – talvez o único aspecto, admite Senghor, em que a contribuição e a proficiência africanas não tenham sido contestadas. O ritmo, nesse contexto, extrapola em muito o âmbito do som e da música, sendo, segundo o poeta, o princípio arquitetônico do ser. As esculturas africanas, mais expressionistas que naturalistas, diferenciam-se das europeias por representarem ideias a partir de relações rítmicas entre formas geométricas; os conceitos que elas ilustram adquirem tanta concretude quanto os materiais de que são feitas. Aliás, a concretude é outra característica, nos diz Senghor, que marca o espírito negro-africano na sua fusão entre sujeito e objeto: assim como se vê a preferência pelas formas sólidas da escultura sobre a pintura, nas línguas africanas as palavras concretas dominam, o que fez Senghor enfatizar a importância do aprendizado do francês – idioma que amava tanto quanto sua língua natal, o serer – para os africanos: as palavras abstratas do francês, bem como sua sintaxe subordinativa, enriqueceriam em muito o próprio fazer literário em África.

O prêmio Nobel de Literatura nigeriano Wole Soyinka: um opositor da agenda da “negritude”.

A elegância e poeticidade da escrita de Senghor não salvariam, é claro, suas ideias de críticas ferozes. Muitos o acusaram de construir uma identidade africana que está em pleno acordo com os estereótipos racistas mais típicos – privilégio da emoção sobre a razão, pouca inclinação ao pensamento abstrato e analítico, predominância de mitos, imagens e ritmos em detrimento de conceitos. De fato, a imagem que Senghor apresenta do africano recende a muito das ideias antropológicas que colocaram a figura do negro de alguma forma separada da humanidade geral, ocupando um nicho à parte. Essa problemática se torna mais nítida quando percebemos a fixidez que Senghor atribuía a essa identidade negro-africana: fica evidente em seus escritos que, para ele, tal identidade deitaria raízes na própria constituição biológica do negro.

Foram particularmente frequentes e contundentes as críticas e contestações vindas do mundo literário africano de língua inglesa, o que levou Senghor a acusar seus pares anglófonos de reencenar em solo africano a tradicional disputa entre ingleses e franceses. Wole Soyinka, em particular, se notabilizou já no início de sua carreira como o opositor da Negritude por excelência, especialmente com sua célebre boutade: “Um tigre não sai por aí proclamando sua tigritude. Ele apenas ataca!”, ao que respondeu o poeta senegalês: “O tigre não fala de sua tigritude porque é um animal. Mas o homem fala de sua humanidade porque é homem e pensa.” Mas não foi só em um trocadilho divertido que tomaram forma as críticas de Soyinka à Negritude: ensaios foram dedicados a isso e mesmo suas obras dramáticas e poéticas – particularmente as de sua juventude – buscaram se desviar da moldura romantizada que os poetas da Negritude emprestavam à África e suas tradições. Se, para os negritudinistas, a África era a bela, exuberante e eterna mãe ancestral; para Soyinka, com o respeito e admiração que tinha o poeta nigeriano pelas tradições de sua terra, tratava-se de um continente que, antes ou depois do contato com os europeus, em seu etos tradicional ou moderno, não estava livre das corrupções morais, dos abusos de poder e degradações que afligem qualquer sociedade humana. Soyinka elaboraria sua própria noção de um mundo africano, definida por uma identidade cultural comum em vez de uma personalidade fixa enraizada na biologia.

No entanto, é necessário evidenciar que, paradoxalmente, ao fixar os caracteres de uma identidade negro-africana, Senghor almejava não um separatismo cultural e racial, mas o contrário: um aprofundamento do universalismo que, segundo ele, seria a marca do século XX. A inserção da África e sua cultura na “civilização do universal”, para usar suas palavras, seria possível exatamente por meio das características que a diferenciam das outras civilizações e não por meio de um achatamento cultural que a tornaria uma entre tantas.

Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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