Segundo a plataforma digital Slave Voyages, entre 1502 e 1600, o México concentrava uma das maiores populações escravas das Américas.
Por Luis Gustavo Reis e Eduardo Bonzatto, do Jornal GGN
Quando pensamos no México, quais são as principais referências do país de que nos lembramos? Da culinária apimentada com seus tacos e burritos a dar água na boca? Do litoral exuberante, mar de águas cristalinas e praias agitadas? Ou dos seriados infantojuvenis e das novelas pitorescas que embalaram a infância e boa parte da vida adulta?
Na literatura e nas artes, por exemplo, como não recordar de Carlos Fuentes, Frida Kahlo e Diego Rivera? Já na arquitetura, as ruínas de monumentos construídos pelos maias e astecas são exemplos da sofisticação da cultura milenar desse povo. Há também os rebeldes Emiliano Zapata e Pancho Villa, bem como os milhares de guerrilheiros do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
A maioria dessas referências circulam pelo mundo e se constituem como símbolos da cultura mexicana. De população majoritariamente mestiça, a origem indígena se sobrepôs e é um marco expressivo, quase único, do fenótipo dos mexicanos.
Mas assim como os demais países do continente, o México também participou ativamente do comércio transatlântico de escravos e escreveu seu nome na lista das regiões que durante séculos patrocinaram o cativeiro de milhões de seres humanos.
Segundo a plataforma digital Slave Voyages, entre 1502 e 1600, o México concentrava uma das maiores populações escravas das Américas. Além disso, durante a vigência do infame comércio, computou mais de 700 mil escravizados desembarcados em suas terras. Foram esses seres humanos e seus descendentes que contribuíram para a construção da cultura mexicana ao longo dos séculos.
Quando o colonizador espanhol Hernán Cortés conquistou Tenochtitlan (capital do Império Asteca e atual Cidade do México), em 1519, estava acompanhado de Juan Garrido, um africano livre nascido no Reino do Congo. Juan já era um velho aliado dos espanhóis, tendo participado ativamente da invasão dos territórios que hoje correspondem a Porto Rico e Cuba.
Juan levou uma vida profícua no México, onde constituiu família, adquiriu escravos, arrematou posses importantes e foi o primeiro agricultor a plantar trigo, cereal que até hoje figura como produto importante da culinária mexicana. Braço direito de Cortés, Juan permaneceu servindo as forças espanholas durante três décadas.
No período em que Juan Garrido viveu no México, o tráfico de viventes estava a todo vapor. A maioria dos africanos que chegaram à região eram provenientes de Angola. Quando os africanos finalizavam a travessia do Atlântico, desembarcavam nas cidades portuárias de Veracruz e Acapulco. Em seguida, levados à Cidade do México, eram vendidos para diversas localidades pertencentes à Nova Espanha (como era conhecido o México naquele período).
Os africanos escravizados eram adquiridos para trabalhar nas minas de ouro, lavouras e casas senhoriais. Evidente que não aceitaram pacificamente o cativeiro e resistiram de diferentes formas, entre elas matando senhores, incendiando plantações e promovendo fugas.
Entre os africanos escravizados que chegaram ao México estava Gaspar Yanga, que, diferentemente de Juan Garrido, não nutria apreço pelos espanhóis. Em 1570, Yanga fugiu da fazenda onde trabalhava e organizou uma comunidade de fugitivos, composta por africanos e indígenas, nas montanhas de Veracruz. Durante 30 anos, Gaspar Yanga e seus companheiros tiraram o sono das autoridades devido aos sucessivos ataques, sequestros e pilhagem de mercadorias. Cansada das baixas e dos recorrentes prejuízos, a Coroa Espanhola decidiu dialogar e enviou uma delegação para negociar com os rebeldes. Nas tratativas, os espanhóis ofereceram uma cidade em troca da paz, oferta logo aceita pelos rebeldes.
Em 1609, nas barbas do Império Espanhol, nascia a cidade de Yanga (que existe até hoje no Sul do México), a primeira governada por ex-escravizados nas Américas. A conquista dos rebeldes foi um marco importante e serviu de exemplo para os demais colonos, pois um grupo de cativos derrotou a poderosa máquina de guerra espanhola.
A história de Gaspar Yanga resiste ao tempo e povoa o imaginário dos afromexicanos. Em 1871, ele foi declarado herói nacional do México e “El primer libertador de América” (Primeiro libertador da América), precedendo em dois séculos Simón Bolívar e José de San Martín.
Por falar em libertação da América, o México iniciou seu processo de independência em 1810. Após séculos de colonização, um padre chamado Miguel Hidalgo exortou a população a combater os desmandos da Coroa Espanhola. Numa guerra sangrenta, que congregou esforços de indígenas, negros e brancos, Hidalgo pregava a união dos mexicanos e prometia abolir a escravidão assim que o conflito terminasse. Capturado em uma emboscada, o religioso foi sumariamente executado nos idos de 1811.
Apesar da morte do padre, a ânsia por independência não arrefeceu e dois afrodescendentes, companheiros de Hidalgo, assumiram o comando da luta anticolonial: José María Morelos y Pavón e Vicente Ramón Guerrero Saldaña.
Combatentes destacados, estrategistas contumazes, esses negros organizaram a população e expulsaram os espanhóis após 11 anos de intensas batalhas. Em 1821, portanto, o México estava livre da ingerência colonizadora. Oito anos após a independência, foi decretada a abolição da escravatura no país.
Durante séculos, a cor da pele não representou uma questão substancial para os mexicanos e nem um impeditivo para que negros galgassem prestígio e reconhecimento social. Em 1829, Vicente Ramón Guerrero Saldaña, o general negro da Independência, foi eleito presidente da nova república e tornou-se o primeiro negro a dirigir a recém-fundada nação.
E a história dos negros mexicanos ainda guardava novos feitos. Foram os negros que criaram um dos símbolos tradicionais da cultura mexicana, o fandango. O ritmo originou-se entre os séculos XVII e XVIII como uma forma de entretenimento dos trabalhadores escravizados nas fazendas e ejidos mexicanos. Misturando elementos africanos, indígenas e espanhóis, o fandango conjuga dança, instrumentos de percussão e canto versado. Embora os instrumentos sejam hispânicos, eles são tocados de maneira percussiva e competem entre si em polirritmos que se assemelham às culturas africanas.
Outra influência negra no México está na dança, especificamente no tradicional passo conhecido como zapateo, que agrega elementos africanos e espanhóis. Até a música mais conhecida do país “La Bamba”, já era cantada por africanos escravizados desde o século XVII.
Embora os negros não sejam tão visíveis atualmente no país latino, não significa que eles não estejam presentes. Pelo contrário, estão espalhados em diferentes cidades, especialmente em Costa Chica e Veracruz, que concentra um número expressivo afromexicanos. Segundo pesquisa extraoficial (os negros não são computados no recenseamento do país, porque segundo o governo eles não existem), com 1,5 milhão de afrodescendentes, o México tem a quarta maior população afrodescendente da América Latina, ficando atrás somente do Brasil, Venezuela e Colômbia.
Até a fonética da língua falada no México tem relação com a herança africana. Por exemplo, quando dizem helado (sorvete), eles não pronunciam o ‘d’, ou seja, pronunciam hela’o. Por vezes, eliminam o ‘s’ no final ou no meio das palavras, como quando dizem buenos día em vez de buenos días ou hablo e’pañol, no lugar de hablo español. Essa forma de falar, suprimindo parte das letras, é comum entre pessoas de origem africana.
Mas se são tantas as influências africanas no México, porque não vemos seus descendentes transitando pelo país, ou não os reconhecemos nas imagens oficiais que chegam até nós?
A resposta é complexa, mas segue uma praxe adotada em outros países do latino-americanos. Os negros foram se misturando com indígenas e europeus, gerando um país miscigenado, ao mesmo tempo em que iam sendo segregados e sendo submetidos a condições de invisibilidade.
A miscigenação no México era pujante até meados do século XVIII. Os casamentos inter-raciais eram autorizados pela Igreja e incentivados pela Coroa Espanhola. Segundo María Elisa Velázques, professora do Museu Nacional de História do México, “os africanos tinham algumas oportunidades em certos ofícios, e podiam se casar com indígenas e espanhóis. Podiam melhorar sua condição de vida. Mas, então, o tráfico de escravos tornou-se mais importante e os espanhóis precisavam de provas de que algumas culturas eram inferiores”. Foi aí que os espanhóis criaram uma gama de termos para definir cruzamentos inter-raciais, as chamadas castas, e os negros passaram a ser classificados como inferiores.
Na virada do século XVIII, começaram a ser produzidas as “pinturas de castas”, que nada mais eram que pequenos quadros feitos por artistas anônimos retratando a diversidade étnica e os costumes da população mexicana. Essas pinturas eram enviadas à Europa para sanar a curiosidade dos europeus sobre o Novo Mundo. Os pintores, empenhados em sua missão classificatória, chegaram a definir dezesseis raças distintas entre a população.
Por trás do verniz informativo, porém, se escondia uma atitude bastante preconceituosa. Quando pintavam um casal espanhol, as cenas eram idílicas e harmoniosas. Já as cenas que retratavam negros e indígenas eram extremamente violentas, com brigas de casal e crianças chorando. O preconceito aparece também ao utilizarem nomes de animais, como lobo e coiote, para designar castas resultantes da união de negros com indígenas ou de indígenas com mestiços.
Essas iniciativas contribuíram para difusão e ampliação de preconceitos – que até então não eram prementes –, sobretudo contra a população negra.
O cenário ganhou novas características após a Revolução Mexicana de 1905, quando os indígenas e os mestiços, antes considerados deletérios da integração nacional, passaram a ser valorizados e identificados como símbolos da nacionalidade mexicana.
Contudo, em virtude de iniciativas governamentais, os negros passaram a desaparecer do cenário cultural e racial do país. Produziu-se, forçosamente, uma invisibilidade desses descendentes de africanos e um sepulcral silêncio em relação a sua contribuição para o país.
Apesar de sua óbvia na cultura e nas comunidades, os afromexicanos foram depreciados nas representações nacionais, ou qualificados como residuais, privilegiando-se a construção do indígena como o baluarte nacional por excelência. Pari passu, a valorização dos indígenas, articulou-se em uma política de “branqueamento” da população orquestrada pelo poder público. Seguro de sua “missão civilizadora”, o Estado estimulou a imigração branca europeia como um modo de substituir a mão de obra negra e proibiu a entrada de negros ou asiáticos no território.
Todas essas medidas contribuíram para que, lentamente, a história da escravidão e a existência de negros mexicanos fossem desvanecendo da consciência nacional. Na atualidade, vale ressaltar, há uma rejeição profunda entre parte dos afromexicanos em se reconhecer como negros, bem como uma negação assídua sobre a presença afro no país, ainda que seja possível identificar diversos sobrenomes de origem africana (Pardo, Prieto etc.) e existirem mais de quarenta cidades com nomes africanos no estado de Veracruz, entre as quais Congo, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Mandinga e Mocambo. Para se ter uma ideia da negação da negritude, a palavra “afrodescendente” só foi reconhecida oficialmente em 2011 e até o presente momento, os negros não estão incluídos na Constituição e tampouco em livros de antropologia, história, geografia do país.
Apesar das tentativas de apagamento, dos esforços para soterrar o passado e ofuscar o presente, e da contínua negação da herança africana, os negros deixaram suas impressões digitais no México e estão entre os principais artífices da cultura nacional.
A bem da verdade, a negritude é um elemento transversal do continente americano. Do tango argentino ao whisky estadunidense; do candombe uruguaio à independência mexicana; do samba brasileiro à culinária jamaicana; do café colombiano ao charuto cubano, os negros foram um dos principais arquitetos de todos esses elementos. De Norte a Sul do continente, eles estão impregnados no DNA de cada país – queira-se ou não.
Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos.
Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).