No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho

O cancelamento da peça ‘A Mulher do Trem’ por racismo mostra que a tensão racial no Brasil chegou a um ponto inédito, cujos rumos passaram a ser ditados pela nova geração de negros que alcançaram a universidade

por Eliane Brum no El Pais

Algo se rasgou em 12 de maio de 2015. Naquela noite, em vez de uma peça de teatro, A Mulher do Trem, oito atores sociais subiram ao palco do auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para discutir a representação do negro na arte e na sociedade. A decisão foi tomada depois que Stephanie Ribeiro, blogueira negra e estudante de arquitetura, protestou contra o uso de “blackface” na peça e o considerou racismo, iniciando uma série de manifestações nas redes sociais da internet. “O que me impressiona é que o debate sobre racismo e blackface é antigo, pessoas do teatro se dizem tão cultas e não pararam para pensar sobre isso? Reproduzir isso em 2015 é tão nojento quanto ignorante. Mas, né, esqueci que, quando o assunto é negro, não existe esforço nenhum em haver respeito”, escreveu no Facebook. E acrescentou: “Só lamento, não passarão”.

Não passaram. Diante de uma acusação tão perigosa para a imagem pública de um e de outro, a companhia de teatro Os Fofos Encenam e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no mesmo local e horário, acolher o debate. O espetáculo que se desenrolou no palco tem a potência de um corte.

O que aconteceu ali?

Temos vivido de espasmo em espasmo, como já escrevi aqui. Os dias têm sido tão acelerados que os anos já não começam nem terminam, mas se emendam. Enormidades se sucedem às vezes no espaço de minutos entre uma e outra. Torna-se cada vez mais difícil perceber o que é (ou será) histórico, no sentido daquilo que faz uma marca no tempo. Minha interpretação é que aquele debate, aquelas três horas numa noite da Avenida Paulista, pode virar uma citação no futuro. Pelo menos um sinalizador de um momento muito particular da sociedade brasileira, em que a tensão racial não pôde mais ser contida no Brasil e atravessou uma fronteira inédita. Como interpretação também é desejo, faço aqui a minha minúscula parte para que o debate tenha o lugar que lhe é devido. Como o historiador Nicolau Sevcenko afirmou uma vez, num outro contexto, há coisas que não devemos nos perguntar o que farão por nós, elas já fizeram. Acredito que este seja o caso aqui.

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