No caso Rafael Braga depoimento da polícia basta

Único condenado nos protestos de 2013 por portar frasco de Pinho Sol é preso agora por tráfico

Rafael Braga Vieira, o único condenado por participar dos protestos que tomaram o Brasil em 2013, está de novo atrás das grades. Na manhã da quarta-feira, ele saiu da casa da sua mãe, no morro da Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, para comprar pão com três reais no bolso da bermuda e uma tornozeleira eletrônica à vista. No caminho foi abordado por policiais da Unidade da Polícia Pacificadora (UPP) que afirmam ter encontrado com Rafael uma sacola de mercado com 0,6 gramas maconha, nove gramas de cocaína e um morteiro, um tipo de foguete usado entre os narcotraficantes para alertar da presença de policiais. As apreensões constam no laudo policial, embora as assessorias da UPP e da Polícia Civil excluam a cocaína da lista.

por Maíra Martin no El País

Rafael, de 27 anos, negou ao seu advogado do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, que cuida do seu caso desde 2013, e ao juiz portar todos os itens. Rafael afirmou que os agentes o conduziram a um beco onde foi agredido e ameaçado para que revelasse informações sobre o tráfico local. Se não o fizesse, relatou o jovem, os policiais o incriminariam colocando nele uma arma e drogas. “Dez minutos depois dele ter saído de casa, uma vizinha chegou dizendo que estavam batendo em Rafael e que ele não tinha nada nas mãos”, relata à mãe, Adriana de Oliveira Braga, catadora de latinhas. A senhora, de 46 anos e mãe de sete filhos, correu para encontrar seu filho, mas ele não estava mais na rua. “Encontrei ele algemado na sede da UPP. Ele não tinha envolvimento com o tráfico, mas eles [os policiais] não gostam dele, disseram que era bandido”, diz Adriana. Apesar da suspeita levantada pela defesa de o flagrante ter sido forjado pelos agentes, um juiz decretou sua prisão cautelar e afirmou na sua decisão que “o indiciado tem a personalidade voltada para a prática delitiva”. Rafael foi acusado de tráfico de drogas, associação com o tráfico e colaboração com o tráfico, crimes punidos com até quatro anos de prisão.

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“Se discute se o flagrante foi forjado ou não quando, na verdade, nunca vamos ter certeza sobre isso porque é a palavra de um contra outro. Mas podemos questionar a forma como os flagrantes são constituídos no Brasil, onde o depoimento da policia é o único que vale para identificar um criminoso hediondo”, explica o delegado Orlando Zaccone, responsável pelo inquérito inicial do caso Amarildo e partidário da legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas para pôr fim à violência e as injustiças da guerra contra elas. “No Brasil basta um garoto negro e pobre com uma pequena quantidade drogas que já é considerado traficante, enquanto você, jornalista branca, seria identificada como usuária”, ilustra Zaccone.

A prisão de mais um jovem negro, pobre e ex-presidiário em uma favela do Rio com uma pequena quantidade de drogas não chamaria a atenção de ninguém, se não fosse porque Rafael já foi vítima de uma sentença polêmica ao ser condenado a cinco anos de prisão por portar duas garrafas de produtos de limpeza em uma manifestação da qual não participava. “Estava chegando do trabalho e me pegaram com uma garrafa de Pinho Sol e água sanitária na mão, me agrediram, esvaziaram a garrafa, colocaram um pano na ponta e me levaram para a delegacia dizendo que era coquetel molotov”, disse Rafael na época.

O ex-catador e morador de rua, alheio a conceitos como coquetel molotov ou black bloc, foi abordado por policiais durante um grande protesto em 20 de junho de 2013 no Rio e acabou sendo processado e condenado por “possuir artefato explosivo ou incendiário sem autorização”. O veredito não considerou que o laudo pericial do caso concluiu que os produtos químicos que ele portava não poderiam ser usados como explosivos. Sua pena foi agravada por ter antecedentes por duas tentativas de roubo e Rafael virou um símbolo da injustiça também presente no sistema penal brasileiro.

“O sistema é seletivo e preconceituoso. O direito penal é utilizado para punir aos indesejados da sociedade que, pelo perfil do nosso sistema penitenciário, são pobres e negros. Todo ex-presidiário fica equivocadamente tatuado como um criminoso, mesmo ele tendo cumprido a pena. Rafael é tido como um suspeito potencial para cometer crimes e tem algo que agrava isso: a Justiça prestigia sempre a versão da polícia. Isso não é justo, deve ter mais testemunha do que o policial, para que não prevaleça sempre sua versão”, lamenta o desembargador Siro Darlan. O problema não é exclusivamente brasileiro, avalia o professor de direito penal da FGV, André Mendes, “mas aqui fica mais acentuado porque o trabalho da polícia fica muitas vezes maculado por práticas ilegais, como os flagrantes forjados”.

Durante sua estadia atrás das grades Rafael chegou a ser punido com dez dias na solitária após seu advogado ter postado no Facebook, em uma das suas saídas em regime semi-aberto, uma foto dele frente a um muro da prisão com a seguinte mensagem: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”. O castigo não foi pichar a parede, coisa que ele não fez segundo seu advogado, mas “veicular de má fé por meio escrito ou oral crítica infundada a Administração Prisional”. Em regime aberto desde 1º de dezembro, o ex-catador é contratado como auxiliar de serviços gerais no escritório de advocacia de João Tancredo, referência na defesa dos direitos humanos violados pelo Estado.

Seus advogados, que lutarão para que o flagrante seja anulado, vão protocolar um pedido de liberdade provisória, para que o jovem responda suas acusações em liberdade. A infrutuosa batalha de 2013 repete-se irremediavelmente.

Muito crítico com o modelo de construção de criminosos que seguem a sociedade e as intuições e que acaba se traduzindo em prisões superlotadas de jovens presos com pequenas quantidades de drogas, o delegado Zaccone argumenta que “um dos nossos problemas é que a qualidade da polícia do Brasil se mede pelo número de prisões”. “É uma política de números que incentiva possíveis flagrantes forjados. Mas não é bem assim que mede-se a qualidade da prestação de um serviço como esse em outros países. Se a polícia está prendendo muito não é bom sinal, porque isso significa que não esta fazendo o trabalho mais importante que é a prevenção”, explica o delegado que questiona: “Quantos Rafael Braga você acha que temos hoje no nosso sistema de Justiça criminal?”

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