Ao construir seu conceito de liberdade, Hannah Arendt propôs que só seria realmente livre quem pudesse, em espaços públicos garantidos, desenvolver toda sua personalidade e capacidade como ser humano. O sistema jurídico ainda exclui do espaço público a perspectiva feminina.
Esperança Garcia foi a primeira advogada brasileira. Em 1770, escravizada em uma fazenda no Piauí, no Brasil, ela advogou pelo direito a sua vida e de seus filhos. Esperança desafiou as limitações de sua vida de escravidão e violência. Myrthes Gomes de Campos bacharelou-se no Rio de Janeiro em 1898. Inscreveu-se no Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil apenas em 1906.
Os paradigmas do direito foram construídos sob a perspectiva masculina. Juristas estruturam respostas jurídicas a partir do que é vivenciado pelo masculino. É muito recente —e ainda incipiente— a participação feminina na construção das fontes do direito. E não digo apenas em relação à baixa participação de mulheres —muito limitada nos espaços de poder em que se decide sobre o direito e pelo direito. Falo principalmente da perspectiva feminina nessa construção: seus direitos, suas particularidades, o espectro da violência sofrida.
No sistema penal, a perspectiva feminina é desconsiderada desde a legislação até a execução das penas. No cenário legislativo, a mulher é inserida sob o manto de fragilidade, hipossuficiência e dependência das condutas masculinas. Sem a possibilidade de decidir sobre sua própria vida e seu próprio corpo, as mulheres perpetuam-se em um lugar de objeto: meio de desejo e instrumento de reprodução. O direito penal aprofunda essa perspectiva machista da sociedade.
O desequilíbrio é ainda mais grave no caso das mulheres negras —força social e econômica de um sem número de famílias—, que não são respeitadas pela legislação penal em sua identidade, diversidade e dimensão plural. São discriminadas e marginalizadas, sem uma perspectiva interseccional. E, quando há alguma suspeita de conduta a incidir no direito penal, são tratadas com o máximo rigor. No direito, o humano ainda é o branco e o masculino.
Em casos de mulheres presas por tráfico internacional de drogas, muitas vezes cooptadas sexualmente a agir para redes internacionais de distribuição de entorpecentes, a valoração da conduta perpassa a perspectiva masculina, agravando-se, em muitos casos, a reprovabilidade da conduta e as penas de prisão.
O fenômeno social jurídico deve espelhar a constituição da sociedade, que é plural e, em grande parte, feminina. A efetividade do discurso racional democrático encontra-se precisamente no amálgama dessas perspectivas. Se não há esse pluralismo, as mulheres não são realmente livres. São outros fazendo as regras sobre suas vidas, seus corpos, seus filhos, suas histórias. É preciso requalificar nosso direito, para que sejamos efetivamente uma sociedade democrática e humana.
Marina Pinhão Coelho Araújo
Advogada criminalista e conselheira do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo)