“Temos de enfrentar dificuldades, mas isso não me importa, pois eu estive no alto da montanha. Isso não importa. Eu gostaria de viver bastante, como todo o mundo, mas não estou preocupado com isso agora. Só quero cumprir a vontade de Deus, e ele me deixou subir a montanha. Eu olhei de cima e vi a terra prometida. Talvez eu não chegue lá, mas quero que saibam hoje que nós, como povo, teremos uma terra prometida. Por isso estou feliz esta noite. Nada me preocupa, não temo ninguém. Vi com meus olhos a glória da chegada do Senhor”.
Martin Luther King, Memphis, Tennessee, 3 de abril de 1968.
Enviado por Isis Aparecida Conceição e Cristian Moura via Guest Post para o Portal Geledés
Toda a peça acontece em um único cenário, o modesto e sinestésico quarto 306 do Hotel Lorraine, em Memphis, na margem leste do rio Mississipi. Você já deve ter ouvido falar dessa região “racialmente harmônica” dos EUA. Na sacada daquele quarto, um dia após o encontro que testemunhamos durante a peça, o líder do movimento de Direitos Civis, Prêmio Nobel da Paz, vigésimo pastor da Igreja Dexter Avenue, Montgomery seria assassinado com um tiro no pescoço.
Um homem negro de trinta e nove anos de idade divide sua longa noite antes de mais uma marcha e discurso, conversando com a jovem e bela camareira Camae. Ambos dividem o tempo da espera de um companheiro de MLK, que não voltou com os cigarros. Dividem diversos cigarros que gentilmente Camea, também fumante, reparte com ele e compartilham suas angustias e impressões em relação ao movimento de direitos civis. Neste momento de partilha e confidencias desvela-se o lado humano e limitações de ambas personagens; de um reconhecido e famoso líder e de uma jovem camareira.
A história de “O Topo da Montanha” – o título faz alusão ao último discurso de Luther King proferido na Igreja de Mason um dia antes de seu assassinato – é uma adaptação do texto original da dramaturga e performance estadunidense de Memphis Katori Hall, dirigida por Lázaro Ramos, produzida e protagonizada por ele e Taís Araújo, levada a cena no palco do Teatro FAAP, em São Paulo, com a codireção de Fernando Philbert.
Ao sair do espetáculo, a sensação não é somente de que testemunhamos o encontro do líder do movimento de direitos civis com uma camareira e as confissões recíprocas que ocorreram naquele quarto, a sensação é de que estivemos juntos com Camae e MLK no Topo da Montanha.
A peça é todo um convite a pensar as relações raciais e sociais no Brasil, mesmo ambientada nos EUA dos anos 60. Ela é cheia de “assovios para cães ouvir” e de mensagens diretas para quem não tem a sensibilidade auditiva canina para o debate sócio racial. A adaptação para a realidade brasileira não deixou nada a desejar. Fascina observar uma crítica ao genocídio negro, que muitos podem entender como exclusividade da realidade estadounidense segregacionista dos anos 60, inserta em referências nacionais a exemplo das campanhas “Eu pareço suspeito”, “Porque o senhor atirou em mim?” e “Reaja ou será morto” dentre tantos outros movimentos contra a violência à população negra e pobre e como a escolha de expressões – “genocídio da juventude” – deixando escuro para aqueles com ouvidos mais sensíveis e racialmente conscientes que Memphis também é aqui!
Aliás, não só aqui em São Paulo, onde a peça estreou no Brasil, mas também em Londres, em 2009, na sua primeira encenação e na Broadway, em 2011, com Samuel L. Jackson no papel do reverendo e Angela Bassett como Camae, e noutros lugares desse território tenso e maravilhoso que o fenômeno da diáspora negra oferece a modernidade. Pois, assim, é só nos lembrarmos de Clichy-sous-Bois, com a revolta de jovens periféricos da França em 2005; de Vigário Geral, com a chacina de crianças e adolescentes, em 1993, na comunidade do Rio de Janeiro; de Tottenham, com os distúrbios civis no bairro londrino, depois do assassinato de Mark Duggan, em 2011; ou ainda de Marte, no nordeste da Nigéria, com as ações de assassinato e sequestro a mulheres e meninas do grupo extremista islâmico Boko Haram, em 2015.
Em Atlântico Negro – Modernidade e dupla consciência, Paul Gilroy, sociólogo britânico negro diz que a categoria da diáspora rompe a sequência dos laços explicativos entre lugar, posição e consciência, consequentemente rompe também com o poder do território para determinar a identidade. Pensando assim, o texto da premiada dramaturga estadunidense Katori Hall, na montagem de Lázaro e Taís, ganha contornos identitários locais afro-diásporicos, a partir de um trabalho dramatúrgico e de tradução minucioso, que faz do jogo divertido dos atores em cena um elo de aproximação entre as realidades vividas tanto em “Luanda, Pelô, Harlem, ou Mangueira” ou noutros lugares da “diáspora negra”. Em qualquer canto desse mundão de meu Deus é o negro, como afirmou Fanon, “um homem negro”; “isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo”. E O Topo da Montanha apresenta-se como parte do esforço diaspórico de retirar-nos desse denso lugar em que nos aprisionaram.
Alguns estudiosos da psicologia social definem um modelo de formação da identidade negra. Seria esta formada em diferentes estágios a saber – submissão, impacto, luta e articulação. Ricardo Franklin Ferreira explica todos estes estágios da identidade afrodescendente em sua obra, “Afrodescendente Identidade em Construção”. Ocorre que o processo de formação da identidade não é uniforme na comunidade como um todo. Por esse motivo que naquele quarto encontram-se Camae, recentemente apresentada ao ódio racial, que já não mais pode manter-se submissa/alienada, contudo, ainda parece estar presa ao ódio e a revolta, efeitos resultantes do impacto da agressão e violência racista, classista e sexista, que nas situações vividas pelas mulheres negras provoca um pertencimento de tripla subalternização, por serem mulheres, negras e pobres.
O Reverendo, por sua vez, em seu “ estágio de negociação”, onde não aceita submeter-se e não sofre tanto com os impactos da violência racista – lhes são quase previsíveis, apesar de incompreensíveis – encontra-se em um estágio de formação da identidade negra, poderíamos dizer, “avançado” lutando e negociando alianças com brancos progressistas, a exemplo dos Kennedys entre outros.
Direitos civis à parte, as personagens apesar de negras encontram-se em lugares distantes, uma mulher, negra, do sul, vítima de assédios e subalternizações diversos, desafiando um homem, negro, do norte, com formação universitária e situação sócio, cultural e econômica muito mais privilegiada. As diversas outras categorias sociais que formam as identidades naquele quarto de hotel permitem observar a interação entre as diferentes experiências e as formas de reação à subalternização histórica da diáspora africana no hemisfério ocidental.
Por sinal, Taís Araújo, na pele da camareira, em sua cena mais marcante da “cama-palanque”, transvestida de Dr. King e, contraditoriamente, fazendo um discurso nacionalista e intensamente crítico dos valores liberais defendidos pelo reverendo, evoca de maneira fanoniana o preenchimento de lacunas provocadas pelas fissuras da cena em relação àquelas e aqueles que, socialmente, foram deixados de fora dos centros ficcional e historiográfico, isto é, que não pertencem aos discursos artístico e histórico estabelecidos pelo grupo “Homem” burguês, branco, individual e ocidental.
Agora entendemos porque ela, com sua intensa interpretação, ao incorporar um discurso nacionalista Black Panter que referencia uma urgência interior às violências física e psicológica provocadas pelo racismo, sai de cena fisicamente consumida o que nos permite a fácil compreensão do porque da sua aparência exausta nas diversas fotos protocolares após a peça, divulgadas nas redes sociais dos fans.
Lázaro consegue alcançar, seja no trabalho de corpo ou de voz, um Dr. King que revela a própria verdade da história do negro, sem resvalar nas indicações melodramáticas das comédias românticas históricas. Do alto de sua indiscutível qualidade técnica traz um Doutor King que, em razão da longa experiência de embate e combate à violência racial flerta com a resignação e desesperança de quem se questiona se a longa caminhada histórica terá fim na sua geração, ou se terá um fim…
Steve Biko dizia que a consciência humana é um estágio avançado da consciência negra e para que fosse alcançada uma sociedade não racializada, o primeiro passo necessário seria racializar o debate político da Africa do Sul do Apartheid. Podemos dizer que as personagens refletem esta ideia de “evolução”. Apresentada ao ódio racial, a camareira, Camae, responde com o mesmo sentimento, ódio, e recrudesce sua leitura do conflito racial inclusive com criticas a opção pacífica de Martin Luther King; “que só sabe marchar, marchar, marchar…”.
MLK, personagem histórica que já se deparara tantas vezes com o ódio racial, sabia não ser o ódio a resposta mais eficiente para desmontar a estrutura que subalterniza a diáspora e não precisava mais manifestar sua revolta, em face de uma realidade que não o surpreendia.
Embora concentre os episódios pitorescos e maravilhosos da última noite de Luther King, a peça consegue alinhavar a sua história a partir da conexão com as diferentes possibilidades históricas de passagem do bastão. Camae com sua indiscutível beleza e todo seu ódio é aquela que nos leva a todos, a plateia e o reverendo, ao Topo da Montanha. O topo da montanha descrito pelo reverendo em seu último discurso, um lugar cheio de otimismo, de onde ele pode ver a “a terra prometida” um lugar onde ele não chegaria, mas que ele sabia que “nós como um povo chegaríamos”.
O pastor encerrou sua prédica dizendo não temer nada, pois seus olhos haviam visto a “Glória do Senhor Deus” desde o topo da montanha. Todos nós, com sensíveis “ouvidos de cachorro” para o chamado da passagem do bastão também fomos levados ao topo da montanha por Camae e vimos que a passagem do bastão é parte do processo de caminhada à terra prometida. Tais e o Lazaro, na nossa opinião, são muito jovens para já querer passar o bastão e nos afastar do fantasma de James Earl Ray
Apesar de que, como negros adultos nos é muito fácil compreender o cansaço que seduz a tentar passar o mais rápido possível esse bastão. Só não podemos deixá-lo cair antes de chegarmos na terra prometida. Aquela utopia que avistamos no teatro FAAP desde o Topo da Montanha, a montanha real !!
Autoras
Isis Aparecida Conceição: É bacharel em Direito, Mestre em Teoria Crítica Racial ( Law School /UCLA) e mestre e doutora em Direito do Estado (FD/USP). Autora do livro “Racismo Estrutural no Brasil e Penas Alternativas – os Limites dos Direitos Humanos Acríticos”. Pesquisadora associada do NUPE (Núcleo Negro da UNESP para pesquisa e extensão).
Christian Fernando dos Santos Moura: É historiador, dramaturgo, Mestre em Artes Cênicas (IA-SP/UNESP) doutorando em Artes-Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG) Pesquisador associado do NUPE (Núcleo Negro da UNESP para pesquisa e extensão).