Um vendedor é atropelado e morto por um trem no Rio de Janeiro e a SuperVia, empresa responsável pela linha, manda o condutor de outra composição passar por cima do corpo para que não ocorressem atrasos.
Por Leonardo Sakamoto Do Blog do Sakamoto
É notório que coisas valem mais do que a dignidade humana – o que pode ser verificado tanto pela quantidade de latrocínios e assaltos violentos quanto pelas políticas que colocam em primeiro lugar a proteção ao patrimônio, depois todas as outras dimensões da qualidade de vida.
Vidas também valem menos do que o tempo em uma sociedade que o considera como commodity valiosa. A conversão de tempo em dinheiro, contudo, não é tão simples. Pois tempo é mais do que dinheiro. Domina-lo significa poder, exercer controle sobre a dimensão que dá sentido à nossa existência. Um processo que, ao longo dos últimos 300 anos, tem levado a criarmos coisas maravilhosas, mas também a nos desumanizar.
Com o banimento do tempo qualitativo e pessoal e toda a sujeição da vida ao tempo linear, quantitativo, repetitivo, automatizado, frio, a gente vai se tornando alheio ao que significa o passar desse tempo e para que o colocamos para correr.
O que é um corpo estendido se não um punhado de órgãos desfalecidos? Não é nada comparado ao indefectível tic-tac do relógio. Se ninguém verificou se estava morto antes do segundo trem passar por cima, morto estava pelas circunstâncias.
E quais as circunstâncias? Ter tido o azar de estar em Madureira (atravessando, de forma irregular e por necessidade, uma linha de trem) e não na Zona Sul carioca era uma delas. Pois, reservadas as devidas proporções, se um corpo se fundisse ao asfalto no Leblon com a ajuda de um automóvel, o trânsito seria desviado até que tudo se resolvesse. Já, em Madureira, trem passa por cima porque o tic-tac manda.
Mais rápido, mais rápido, mais rápido. Para quê? Talvez para espantar o vazio gerado por nós mesmos.