No virar da chave, poesia slam presente!

Desejo

esse meu desejo é uma vontade coletiva

muitas vezes representada 

poucas vezes representativa

é que eu quero ser preta

preta de corpo alma e política

(MOTA, 2020. Não publicado)

 

Certo dia, Aristóteles nos disse que a poética é o estado involuntário da alma. Recentemente, Antônio Cândido nos disse que “a literatura é o próprio homem”. Não seria, portanto, próprio da mulher e do homem pensar naquilo que atinge constantemente as suas almas? E pensar sobre aquilo que atinge a alma não seria o mesmo que refletir sobre as questões externas, naquilo que forma o homem, isto é, sociedade, política, direitos, valores, culturas, entre outras estruturas? Então, decidi beirar essas duas teses para pensar em poesia falada de autoria negra e refletir sobre oficina de poesia slam para o EJA.

Para Cândido, a fruição literária não é um privilegio de poucos, mas, sim, uma capacidade de todxs. A busca por explicações, por compreensões daquilo que toca ou incomoda profundamente a alma, é própria da natureza humana. Sendo assim, independente de gênero, raça, condições econômicas e mobilidade física, qualquer pessoa, repito: – Qualquer pessoa pode desdobrar-se na poética e em outros meios literários.

No entanto, há de se considerar que algumas pessoas negras tornam-se intelectuais através de comutações, tais como, “[…] conversão religiosa com um professor ou colega muito influente que nos convenceu a dedicar a vida a atividades de leitura escrita e conversa pelo prazer individual mérito pessoal e ascensão política dos negros […]” (HOOKS, 1995?, p. 465). Contudo, devido o Brasil ser um país de extrema desigualdade racial, torna-se intelectual é quase que uma necessidade para os não brancos.

A Poesia Slam de autoria negra refere-se à busca por tudo que foi apagado ou minimizado pela escravidão. No slam, o apelo da alma desafiada pelas violências sociais é ouvido, mais do que isso, é aprendido e refletido por variadas pessoas. As vozes e os corpos dos trovadores contemporâneos expressam o amargor das experiências externas as quais ferem a alma, mas também podem expressar o que a enriquece; como por exemplo, amor, carinho, paixão, alegria, sabedoria… Sendo assim, a temática é ilimitada, já as regras para participar da batalha de slam são bem definidas: a) é necessário 3 poemas de autoria própria; b) esses poemas serão recitados em rodadas eliminatórias; c) cada rodada tem a duração de 3 minutos; d) não é permitido acompanhamento musical nem adereços. 

Infelizmente, de vez em quando, no Ensino de Jovens e Adultos (EJA), encontramos discentes com âmagos entristecidos, cansados e silenciados pelo racismo estrutural e pelo preconceito que se tem contra pessoas que entram no ensino básico tardiamente. Eles precisam de algo que os incentivem a prosseguir, que preencha esse vazio sistemático e que os envolva na escrita criativa. Oficina de Poesia Slam é a chave! Digo isso não só porque me identifico com gênero, mas porque vi o que esta oficina pode proporcionar aos discentes do EJA. 

Em 2019, bem antes desse período pandêmico, discutíamos poesia slam de autoria negra em uma sala pequena, travada por grades. À medida que interpretávamos as poesias, refletíamos também sobre o passado de cada um. Histórias como “tive que decidir entre a educação e sustento”; “meu marido não deixava estudar”; “sempre tive dificuldade com o português”, “tinha vergonha do que eu escrevia” repetiam-se. Então, percebi que não estávamos apenas discutindo poesia, estávamos tirando o peso que acabrunhava as almas dos discentes. 

Sim! Assim como nós, professoras/es em formação ou formadas/os, nossos alunos sentem o racismo estruturalizado na sociedade e, por vezes, difundido pelas instituições públicas de ensino. Eles sentem… E o nosso papel enquanto professores não é apenas comprometer-se com os conteúdos X e Y, precisamos ter postura política-ideológica antirracista e antissexista. É caso de urgência! Devemos tratar disso, porque as almas dos nossos alunos não suportam mais. 

Roberta Estrela D’alva, pioneira da poesia slam brasileira, um dia disse que o slam é ocupação. Aprendamos com ela a ser melhores transgressores. Um espaço poético democrática, que tem a oralidade e o corpo como vias comunicativas, que tem temáticas antirracistas e antissexistas, contrapondo-se completamente a essa tradição literária defendida por brancos/as, a maioria heterossexual, só poderia ser contraventor nessa sociedade cisheteropatriarcal branca.

Em vista disso, meus amigxs, a luta é grande. E ela diminui conforme os passos em direção à democracia aumentam. Ministrar oficinas de poesia slam, principalmente para o EJA, é um bom ponto de partida para essa caminhada. Como diz mainha, vá na fé que tudo vai dá certo.

 

Bibliografia:

CANDIDO, Antônio. Antônio Cândido para formandos USP letras 2008. Produção: Thiago Freire, 2012. Disponível em: https://youtu.be/bonUMnPNXnw . Acessado em: 14 de jan. 2021. 

YouTube video

EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: DUARTE, Mel. Querem os calar: Poemas para serem lidos em voz alta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

HOOKS, bell. Intelectuais Negras. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509708/mod_resource/content/0/16465-50747-1-PB.PDF . Acessado em: 20 de jan. 2021.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...