Notas de Rodapé – sampa

por Fernanda Pompeu para o Portal Geledés

Amanhã será segunda-feira. Vou até Perus, bairro que ficou tristemente célebre por conta de um cemitério clandestino. Irei entrevistar uma agente de saúde, candidata a um prêmio de direitos humanos. Tomara que ela ganhe, pois é uma dessas guerreiras anônimas que se espalham pelo Brasil. Pegarei o metrô da linha Amarela – sem condutor e com portas corta-suicídio. O ponto final é a majestosa Estação da Luz. Lá subirei num trem da linha Rubi. Adoro trens! Máquinas que fazem a gente voltar no tempo sem deixar o presente.

Amanhã será terça. Vou para o Mercado Municipal. Baterei papo com a Marinalva, paraibana que vende queijo coalho, carne de sol, relicários. Ela é de Campina Grande, onde acontece o Maior São João do Mundo. O jeito dela falar me faz lembrar da dona Fernanda, a primeira xará que conheci. Ela tinha uma banca de ovos e um olho de vidro. Minha avó Afonsina, não sei se inventando ou honrando a verdade, dizia que o olho da feirante tinha sido furado por um garfo.

Amanhã será quarta. Vou para as bandas do Bom Retiro com a minha mãe. Sacolejar a sacola pela Zé Paulino, pela Três Rios, pela Barra do Tibaji. Afinando os ouvidos para velhos judeus e árabes naquela conversa de comercializar tecidos. Quando eu era criança desejei ser caixeira-viajante. Sonhava em arranjar uma mala de couro e fugir vendendo apetrechos de costura e panos coloridos de cidade em cidade.

Amanhã será quinta. Momento sabático da semana. O que vou fazer não conto. Para ninguém.

Amanhã será sexta. Dia de acender velas para o São Google e rezar pela Wikipédia, além de entoar salvas à banda larga. Vou observar alguns sites e ver a quantas anda o cordel eletrônico das redes sociais. Verificar quem ainda me ama e quem já me esqueceu. Como cada vez tenho menos dinheiro e mais anos, estou tentando me tornar uma webredatora, uma profissional do futuro. Talvez ainda dê tempo.

Amanhã será sábado. Vou assistir a uma palestra no Museu da Resistência, no prédio do antigo e famigerado Dops. O assunto é a abertura dos arquivos da ditadura e o direito à memória política. Quando eu tinha oito anos, rolou o golpe militar de 64. Meu pai, comunista e sindicalista, foi preso. Também foi demitido do Banco do Brasil, sem direito a nada. A família que era classe média ficou pobre. Ou quase.

Hoje é domingo. Dia da libertação dos trabalhadores. Ainda cedinho vou para a praia. Não preciso de maiô, toalha, havaianas, filtro solar. A praia que mais gosto de frequentar é a Padaria Letícia na rua Natingui. Vou pedir o de sempre. Um expresso. Uma canoinha francesa na chapa com requeijão. Um ovo frito com a gema bem molinha. É fácil ser feliz.


 

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

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