Novos olhares sobre a diáspora africana

Na segunda matéria da série sobre os debates das edições passadas do fHist, a jornalista Cândida Canêdo reportou a mesa “África Brasil: Histórias da diáspora e da identidade negra” do 2º Festival de História, realizado em Diamantina em 2013.

Do  fHist

Reprodução/ fHist

“Enquanto os Leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias da caça sempre contarão a glória do caçador”. O professor da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga, arqueólogo nascido e graduado no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo, sorriso largo, voz firme e pausada, recorre ao provérbio africano em conversa, logo após sua palestra no fHist, para ilustrar o que acabara de afirmar: além de contar a história não contada dos negros do Brasil, a história já contada tem que ser revista.

O Brasil é o único país da diáspora africana que tem leis para garantir o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Nas salas de aula, entretanto, sua prática está longe de ser uma realidade cotidiana e adequada. “Mas esse é mesmo o caminho da mudança, não vejo outro”, assinala o professor, que não minimiza as conquistas dos negros brasileiros nos últimos anos. Para que a Lei 10.639/2003 seja cumprida integralmente, é preciso que a historiografia inclua a versão dos negros, já que o olhar eurocêntrico educou os próprios educadores e está presente no imaginário coletivo desde as questões mais simples: o negro não veio da África, ele foi deportado; ele não influenciou a cultura brasileira, ele trouxe cultura e fez cultura junto com as demais etnias que formaram o nosso povo, explica.

Com 37 anos de Brasil, já naturalizado, pai e avô de brasileiros, Kabengele Munanga fala da diferença de quando aqui chegou e a palavra racismo era um tabu. “Hoje o Brasil é um país que assumiu o racismo, à sua maneira. Você não pode lutar contra um problema social que você nega, esse é o ponto de partida para as políticas afirmativas da igualdade racial”, afirma. O crescimento das narrativas que incluem o negro e sua visão de mundo como sujeitos da História do Brasil, e não como objeto ou vítima, é um passo transformador, para o qual já começa a contribuir outra conquista, que ele destaca: a Lei 12.711/2012, das cotas sócio-econômicas e raciais nas universidades.

“O ingresso dos negros nas universidades amplia o horizonte; eles já se interessam por temas que jamais foram pesquisados, levam seus orientadores brancos a fazerem isso e enriquecem as abordagens com experiências intransferíveis de suas vidas sob o racismo”, avalia. O antropólogo destaca que essas pesquisas exigem a valorização da oralidade como fonte. Afinal, a história não contada não foi escrita e o escrito é o registro, uma memória, conforme Munanga, que não pertencerá e nem interessará somente aos negros, mas a todos que formam a identidade nacional.

Hoje um ícone das causas do negro no Brasil e referência no meio acadêmico, Kabengele nasceu em 1942, no antigo Congo Belga, então colônia, filho de agricultores pobres e foi o primeiro antropólogo graduado em seu país, na Université Officielle Du Congo à Lubumbashi, em 1969. Foi fazer pós-graduações na Bélgica, onde viveu por três anos e teve seus dois primeiros filhos, mas não concluiu o doutorado por razões políticas. Eram tempos muito difíceis no Zaire e sua bolsa concedida pelo governo belga foi cassada, relata.

Surgiu então a oportunidade de vir para o Brasil, pelas mãos do professor Fernando Mourão, da USP, que havia conhecido em uma conferência. Aqui chegou em 1975, após a USP aprovar seu projeto e doutorou-se em Ciências Sociais, retornando ao Zaire, mas não ficou muito tempo. “Queria servir o meu país, mas tive que fugir”. Embarcou com a ajuda de amigos, um passaporte diplomático e a “desculpa” de participar de um congresso. Veio sozinho? “Sim, trouxe a mala e os diplomas e depois, em 1980, busquei meus filhos”. São dois belgas, dois congolenses e o caçula, Mulumba, brasileiro. Inicialmente, foi dar aulas no Rio Grande do Norte e depois ingressou na USP, radicando-se em São Paulo.

O mito da democracia racial

Ao lado da bela produção acadêmica que iniciou no Brasil, Munanga viveu o racismo velado, sob olhares que o estranhavam nos meios que frequentava. Seus filhos, estudando em escolas particulares, sofriam discriminações. “Eles voltavam da escola de ônibus com os colegas brancos e por diversas vezes eram revistados pela polícia”, conta, para defender que o problema não é apenas sócio-econômico, como advoga o mito da democracia racial. “É a geografia do corpo, a pele chega primeiro”, afirma.

A história da África e a história da diáspora se encaixam e se completam dialeticamente. A história da África estará incompleta se não incluir sua continuidade na diáspora a partir do tráfico negreiro nas Américas; e a história da diáspora será sem cabeça se a sua elaboração não partir das raízes africanas e dos acontecimentos históricos que a provocaram, sentencia o professor. Se essa é a correta inspiração da Lei 10.639/2003, nascida de reivindicação dos movimentos negros, tem sido um dos enormes desafios recontar a história.

Pesam positivamente, segundo o professor, esforços do Ministério da Educação, entidades e movimentos negros e dos centros de estudos Afro-brasileiros na conscientização e formação dos educadores. Paralelamente, começou-se a produzir novos livros e materiais didáticos, o que ainda está em andamento. Mas há livros muito bons, medíocres e alguns péssimos, alerta, já que “entraram em cena também os franco-atiradores, de olho nesse mercado”. Quanto às universidades, algumas introduziram o estudo da África ao menos na formação de historiadores, mas com dificuldades de encontrar mestres e doutores, e outras foram além, com pós-graduação. Há também cursos como psicologia e educação física que começaram a se preocupar com a questão étnica. É suficiente? “Não sei, a única certeza é o encadeamento de um processo que no passado existia em poucas instituições”, responde.

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