O Brasil não conhece o Brasil: o promotor que ganha 24 mil e D. Nicinha

O Brasil não conhece o Brasil. Nenhum dos dois se conhece. Um Brasil é representado por aquele que se considera cidadão legítimo por natureza e acha que o outro existe para lhe servir. O outro Brasil, o que serve, acredita nisso  e, embora sinta a exploração, tem dificuldades para se rebelar. Ilustro esses dois Brasis através de duas falas que me chamaram a atenção nos últimos tempos. Uma delas se refere a um áudio vazado, no qual um procurador de Minas Gerais chamou de ‘miserê’ seu salário de 24 mil reais, acrescido de benefícios. Além disso, alegou que sua origem não é humilde e, portanto, não está acostumado com limitações. Intrigante esse Brasil! Em um país onde o salário mínimo é de R$ 1.045,00, o procurador obtém uma renda mensal superior em mais de 20 vezes ao que a maioria recebe para sobreviver. Mas há outro ponto fundamental em sua fala. Quando ele menciona que não é de origem humilde e não está acostumado com limitações, subentende-se que o outro Brasil está habituado a essa situação, ou seja, é como se a pobreza e a miséria fossem questões de tradição ou costumes. Do outro lado, aquele do Brasil acostumado, uma fala me levou às lágrimas. Estávamos discutindo a infância, em uma postagem de uma amiga de Marabá, interior do Pará, quando D. Nicinha fez o seguinte comentário: “Não dá pra entender, mais (sic) depois que inventou (sic) os direitos humanos, acabou (sic) com os deveres dos seres humanos. Lembro de quando comecei a trabalhar so (sic) sabia dos meus deveres para trabalhar, não sabia de nenhum direito, tudo era bom demais”

Pausa para pensar…. 

Essa segunda fala mostra que D. Nicinha acha que tem direitos demais e que preferia quando lhe eram atribuídos apenas os deveres. Além disso, atribui a culpa dessa situação a quem inventou os direitos humanos. O promotor de Minas Gerais reivindica mais porque não está acostumado a limitações, enquanto D. Nicinha reivindica menos do que tem direito porque está acostumada somente com os deveres. Ahhh, meus Brasis! Cada um deles considera correta sua posição no sistema e reivindica seu direito de permanência. Aqueles que, ao contrário de D. Nicinha, ousam questionar o lugar do promotor são recebidos como loucos e podem até sofrer violências das mais diversas ou pagar com a vida por sair do lugar. 

Ariano Suassuna, grande conhecedor desses dois Brasis, durante uma entrevista a Amneres Pereira disse: “Olhe, eu não idealizo romanticamente o povo do Brasil real, não. Eu comparo episódios como esse à guerra de Canudos. Eu lembro sempre que, quando o Brasil real levanta a cabeça, o Brasil oficial vai lá e corta essa cabeça”. (Fonte: Agência Câmara de Notícias, 2006).  E A psicanalista e professora universitária Maria Homem, em um vídeo no YouTube, intitulado “O fim do Estado como núcleo social”, afirma que “existe uma paranoia de que alguém está roubando meu lugar. Mas quem disse que o lugar era seu?” Sua fala é confirmada através de declarações como a de Paulo Guedes. O ministro da economia disse que “com dólar baixo até as empregadas domésticas estavam indo para a Disney, uma festa danada”. Analisemos essa última frase: “Uma festa danada”. Esse Brasil oficial não admite que o outro Brasil participe da festa e prefere cancelá-la a incluir participantes que estão do outro lado. Mais do que simples egoísmo, essa atitude revela um grande sadismo! É cruel esse Brasil! 

Mas a nossa maior tragédia é que esse Brasil de Paulo Guedes e do promotor é que decide como o outro Brasil deve viver. É ele que ocupa as posições mais elevadas nas hierarquias das empresas, do ministério público, dos bancos, do exército, da política etc., porque, como bem expressou o promotor, ele não está acostumado a dificuldades e reivindica como direito um salário exorbitante para os padrões brasileiros. Ao contrário do outro Brasil, ele tem condições de se preparar para ocupar esses cargos dos quais se acha merecedor e vem se perpetuando neles de gerações em gerações. É desastroso sermos governados, geridos e pensados por esse Brasil. 

Há um Brasil que nasce em condomínio fechado, com domésticas, porteiros, babás, escolas particulares, comida abundante, aulas de inglês, natação, fotografia, teatro, Disneylândia e muito shopping centers. Enquanto isso, o outro Brasil sai para trabalhar desde cedo, não se alimenta de forma equilibrada, não encontra vaga em hospitais públicos, recebe educação de baixa qualidade, assiste Ratinho e Datena como passatempo, compra roupa na feira e sequer pode fazer um “rolezinho” no shopping. 

O primeiro Brasil odeia esse segundo. E ele só não tenta fuzilá-lo porque tem os agentes do Estado à sua disposição para fazer isso, vide o genocídio da população negra nas favelas e periferias.  E todos os agentes sabem da existência dos dois Brasis e sabem que devem tratá-los de formas diferentes, como afirmou o tenente coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, comandante da Rota da Polícia Militar do Estado de São Paulo: “São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado”. 

Outro dia, lendo a tese de doutorado de Fábio Mallard, apresentada ao departamento de Filosofia na Universidade de São Paulo,  chocou-me  os registro dos laudos médicos, psiquiátricos e sentenças de juízes, escritos pelo Brasil oficial.  Trata-se de um pessoal extremamente despreparado para lidar com as mazelas humanas e o abismo social entre os dois Brasis.  Esses agentes cresceram longe e segredados a vida inteira, desprezando ou temendo o outro Brasil, como podem olhar para ele na hora de julgar, emitir um relatório médico?  Tomemos alguns exemplos. Um psiquiatra redigiu um laudo sobre uma detenta que desde pequena, nas suas palavras, era “convidada” pelo pai para “fazer amor”, enquanto outro descreve a paciente como “descuidada de si”, devido às automutilações e cicatrizes que trazia no corpo. A linguagem que floreia e camufla a violência e não reconhece a história de vítima da pessoa pela  exclusão social e marginalidade é reveladora da falência das instituições e da falta de preparo dos agentes do Brasil oficial para lhe dar com o outro. 

Essas pessoas não se dão conta do Brasil da maioria, dos informais, das mães solo que não têm creche para seus filhos, das periferias que viraram cidades dormitórios, onde as pessoas levantam às 4 h da manhã, tomam seis ônibus para servir os centros e os bairros abastados e voltam às 21 h, cansadas, humilhadas, de cabeça baixa e ainda gratas a Deus por poderem ser exploradas, pois e os que  já foram descartado há muito tempo por esse outro Brasil? 

Olha, vou dizer uma coisa. Eu já estive nos dois Brasis, naquele do promotor por um curto período e è de dar nojo o que escutei de seus representantes. Depois de morar por alguns anos na Itália, morar no mesmo prédio que o gari, a diarista, o médico e o engenheiro, ver meu filho estudar na mesma classe que o filho do empresário e do garçom, voltei para a cidade de Jundiaí com meu marido, que havia conseguido um ótimo emprego como gerente de tecnologia em uma multinacional. E mesmo fazendo parte dessa nova classe média alta, optei por matricular meu filho na rede pública de ensino e ouvi de um gerente da empresa: “Vocês são loucos! Vão colocar seus filhos com os bandidos?” Na época, meu filho tinha apenas cinco anos, assim como todos os seus coleguinhas. 

Tendo estado nos dois lados, tenho propriedade para afirmar que o Brasil que acha que tem direitos demais e o Brasil que acha que precisa de mais, não se conhecem e não se encontram. O Brasil dos salários de 24 mil reais nunca permitirá que o outro se iguale a ele, pelo contrário, quer subir ainda mais, aumentando as diferenças. É o outro Brasil, aquele da D. Nicinha, que precisa mudar, acordar e se rebelar. Não mudaremos a situação esperando as decisões virem de cima, pois é o Brasil de cima que esmaga a cabeça dos que estão embaixo através do uso das instituições sociais. Quantas vezes nos almoços de domingo na casa de um dos Brasis ouvi “Preciso ligar para o meu amigo do Detran para ver aquela multa lá” ou “você que trabalha na Receita Federal poderia olhar uma parada para mim?” e ainda “Minha empregada agora quer direito demais”.

É não aceitando esses lugares como naturais e de mérito individual e se rebelando que podemos provocar fissuras nesse tecido social brasileiro. O Brasil oficial olha com desdém para esse outro Brasil, lhe menciona com desprezo, quando muito com “piedade”, por isso é inútil esperar mudanças das classes governantes. E retomo para finalizar as palavras do saudoso compositor que nos deixou esses dias e que citei para abrir esse texto: “O Brasil não merece o Brasil. O Brasil tá matando o Brasil”. 

 

Fabiane Cristina Albuquerque
Graduada em Ciências Sociais pela UFG
Mestrado em Pedagogia Interculturale e Filosofia pela Università di Verona- Itália
Mestrado em Sociologia- Unicamp
Doutoranda em Sociologia- Unicamp


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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