O consenso das gentes

Por: Edson Cardoso

 

Uma empregada doméstica uniformizada serve a refeição. Na mesa estão pai e filho, que conversam. A empregada se retira. A conversa continua. Fala-se de sentimentos, desejos, vida de novela. A empregada é negra, seus patrões são brancos. A empregada veste-se de modo a nos fazer imaginar que nunca será escolhida como mulata do Ancelmo Gois. Aquelas que o serão um dia têm a pele mais clara e coxas grossas bem visíveis.

 

Minha imaginação não pode acompanhar a empregada sequer até a cozinha. A empregada desaparece, some. Ela pode reaparecer na porta de casa, com o casaco esquecido por um dos filhos dos patrões. Ele dirá, enternecido: o que seria de mim sem você? E lhe fará um breve afago, antes de entrar no automóvel e seguir para as ocupações e atribulações de um dia de trabalho.

 

Precisamos realmente interrogar-nos sobre o sentido dessas representações? A criação de seres inferiores destinados a compor um cenário, no qual circulam os verdadeiros humanos, sua opulência e beleza, suas necessidades e desejos.

 

A ficção televisiva é um imenso sumidouro de pessoas pretas. Não lhes resta nem um fluxo invisível de vida, uma conspiração na cozinha, nos jardins: posições, opiniões, proposição de soluções. Pode esquecer.

 

Não há a rigor também um poder que nos oprima, uma vez que ninguém se queixa de nada. Todos parecem muitos felizes. Aceitamos o lugar, as funções, a desumanização – ao que parece há grande consenso em que se deve viver a vida dos outros. Só se pode mesmo ser mais feliz numa cerimônia da Seppir, onde se transita pelas mesmas formas de dominação, vive-se também um clima de fulgurante consensualidade, mas as bandejas e os talheres se disfarçam.

 

Que nos dizem mesmo essas tramas de novela, de  explícito, construídas com a conivência negra? Elas dizem o seguinte: você acaba de testemunhar como as coisas são. Há dor e sofrimento aqui entre nós? Sobra ainda lugar no seu coração para algum ressentimento, ou rancor, ou ódio, ou mesmo alguma vaga aspiração humana? Ninguém pode transcender em elevação àqueles que se dispõem a bem servir a beleza e a humanidade verdadeira.

 

 

Fonte: Írohin

+ sobre o tema

Compromisso com a segurança

A negligência com a segurança pública levou à morte de cerca...

Meta passa a permitir que usuários classifiquem gays e trans como ‘doentes mentais’

Publicações que associem "doenças mentais" a identidade de gênero...

Brasil flagra mais de 1,6 mil escravizados em 2024, do Rock in Rio à BYD

O Brasil encontrou, pelo menos, 1.684 trabalhadores em condições...

Estudo mostra que Bolsa Família reduziu mortes por tuberculose

O programa federal de transferência de renda Bolsa Família...

para lembrar

Seminário Experiências Iberoamericanas de Polícias de Promoção da Igualdade Étnico-Racial com Perspectiva de Gênero

Seminário Experiências Iberoamericanas de Polícias de Promoção da...

Litoral

Por: SÉRGIO MORADEI DE GOUVEA   "É muito preocupante...

Petrobras encontra petróleo em águas profundas na bacia de Sergipe-Alagoas

A Petrobras (PETR4) informou nesta quarta-feira que a...

O nascimento do coletivo ‘Judias e judeus com Lula’

É importante frisar: nós não possuímos nenhuma intenção, ambição...

‘Papai, o que vai acontecer com a gente quando Trump começar seu governo?’

Era ainda cedo e praticamente escuro. Eu e meus dois filhos corremos para conseguir entrar no ônibus que passava. Nenhum de nós queria esperar...

Tapa na cara

Começar o ano ouvindo um prefeito reeleito democraticamente fazer apologia da "liberdade de expressão em defesa da ditadura militar" (como ocorreu na capital do RS)...

Trump não convidar Lula é o novo penduricalho da extrema direita brasileira

O dia da posse de Donald Trump se aproxima, será em 20 de janeiro, e o universo bolsonarista tenta transformar o fato de Lula...
-+=