O desmonte do programa CULTURA VIVA e dos Pontos de Cultura sob o governo Dilma

Acaba de sair nova edição da revista Murro em Ponta de Faca http://issuu.com/gugulooper/docs/revistamurro_07. Esta edição publica um artigo que escrevi, analisando o desmonte do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura no governo Dilma (seja na gestão Ana de Hollanda ou Marta Suplicy). A quem interessar, segue meu artigo na íntegra:

Era uma vez o programa CULTURA VIVA…

Foi uma fresta. Uma fenda que se abriu. E, de repente, um conceito matemático (“-dá-me um ponto de apoio e uma alavanca e moverei o mundo!” – Arquimedes) se transforma em política pública. Em seis anos de trabalho, 8.500.000 pessoas beneficiadas por ano, em mil e cem municípios e mais de 3.000 Pontos de Cultura (dados IPEA- 2009). Os mais variados Pontos, de indígenas fazendo filmes no Parque Nacional do Xingu à orquestra de violinos na favela da Mangueira (RJ); jovens organizando bibliotecas comunitárias ou criando fusão entre jazz e aboios (o canto dos vaqueiros) no vale do Cariri; quilombolas trabalhando com Cultura Digital em software livre, universitários aprendendo com Griôs; Pontos de Mídia Livre, Pontinhos de Cultura para a cultura infantil e lúdica, Pontões, Teias, Oficinas de Conhecimentos Livres, Interações Estéticas e tudo mais que caiba na Cultura (e tudo cabe na Cultura, assim como a Cultura cabe em tudo).

Foi retirado um véu da invisibilidade (entre muitos outros véus que precisam ser retirados) e todo um país se desescondeu. Ponto de Cultura, a sedimentação do fazer cultural no território, junto às comunidades, desencadeando processos de autonomia, protagonismo e empoderamento criativo e social. Cultura Viva, a macro-rede que une e dá sentido a esta imensa rede de pontos diversos. Diversos e comuns, ao mesmo tempo. Cada Ponto com sua forma e modo de ser, mas todos com um ponto em comum: a unidade na diversidade.

Não era esta a intenção original do governo brasileiro. Com a posse do presidente Lula havia o desejo sincero em “descentralizar e democratizar o acesso aos bens culturais”, todavia, o caminho inicialmente adotado previa a construção de espaços físicos, as BACs – Base de Apoio à Cultura, pequenos centros culturais pré-moldados, que seriam instalados em bairros de periferia em pequenos municípios. Era um caminho que privilegiava a “estrutura” em detrimento do “fluxo”, o cimento e o ferro no lugar da “pulsação”. Depois de construídos esses centrinhos culturais, caberia à população ocupa-los e mantê-los. Mas quem pagaria as despesas? Não somente água, luz, segurança, mas também a remuneração das pessoas que ministrariam as aulas de arte (quem defende a cidadania dos outros, com trabalhos socio-culturais, também precisa ter respeitada a sua própria cidadania e direitos), a manutenção dos grupos artísticos estáveis, as apresentações, os intercâmbios… Sobre isso, nenhuma palavra ou conceito. Por sorte (uma vez que seria mais um caso de desperdício de recursos públicos – à época, cada BAC custaria R$ 2 milhões) a ideia não prosperou; escolheram terrenos, fizeram maquetes, mas no momento da operação houve uma série de desentendimentos que levaram o próprio ministério da cultura a uma grave crise, incluindo a saída de diversos dirigentes.

Passados quase seis meses em que a secretaria responsável permaneceu sem titular, aconteceu a minha nomeação. Mas o que fazer? A ordem era “O presidente da república quer implantar as BACs, adorou as maquetes!”. Mas eu não concordava com este caminho. Já havia passado por experiências anteriores, estudado processos de apropriação de espaços de cultura e lazer em bairros de periferia e implantado circuitos de cineclubes e feiras de arte nestes mesmos bairros, vinte anos antes. Um programa com foco apenas na construção física não daria certo. Melhor nem assumir a secretaria a ter que implantar um projeto com o qual não concordava. Tive que agir rápido e apresentar um programa alternativo, com conceito, filosofia, objetivos, descrição, metas, orçamento e cronograma, tudo escrito em duas noites, antes da própria nomeação ser publicada no Diário Oficial. Se o ministro Gilberto Gil estivesse de acordo, ótimo; do contrário, pouparíamos tempo para ambos. Ele não só concordou como foi o esteio para a implantação da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura. “Cultura é fluxo e fluxo é vida”, foi o que ele percebeu. E assim invertemos a ordem, saímos da parede morta e fomos para a Cultura Viva.

O programa cresceu em progressão geométrica, isso porque adequado ao veio da vida. E os projetos apareceram. 800 logo no primeiro edital; era para selecionar 100 Pontos de Cultura, mas ampliamos para 260, tão boas e belas foram as propostas recebidas. E tudo a partir de uma ideia simples: potenciar o que já existe, valorizando a criatividade e inventividade de nosso povo. O primeiro Ponto de Cultura oficialmente assinado no Brasil, foi em Arcoverde, no agreste de Pernambuco, instalado em uma estação ferroviária desativada e dirigido por jovens universitários, agricultores sem terra e indígenas, fazendo arte e invertendo a própria lógica do poder nestas pequenas cidades do interior do país. Isso aconteceu apenas cinco meses após o lançamento da idéia, em novembro de 2004; um mês depois, já eram 72 Pontos de Cultura com convênio assinado (alcançados às 16 horas da tarde do dia 31 de dezembro). Com a surpresa e êxito alcançados o orçamento cresceu de R$ 5 milhões em 2004 para R$ 65 milhões em 2005 (via emenda parlamentar). Ano seguinte, novo edital e mais 2.500 projetos inscritos. Em seis meses de trabalho consegui provar minha tese: quando um governo vai além e promove uma gestão compartilhada com seu povo, os resultados são muito mais eficazes. E não se falou mais em BAC.

Foi tanto trabalho. Mas tanta coisa boa e bela brotou. E feita diretamente com as pessoas, sem intermediação, aplicando os conceitos de Estado-Rede (Castells) e Estado Ampliado (Gramsci) em toda sua radicalidade. Assinei convênios com mães de santo, jovens das favelas, o cacique Aritana dos Yawalapiti… Surge o primeiro problema: o Estado não estava (e não está) preparado para este diálogo direto com o seu povo. A mesma burocracia que regia contratos bilionários, com bancos, empreiteiras ou mega-ONGs, iria reger os pequenos e micro-contratos com entidades comunitárias. E a burocracia morta foi travando a vida. Ainda assim foi possível encontrar soluções. Ao final 2007 (mais precisamente entre os dias 17 e 31 de dezembro) foram estabelecidos convênios com 21 estados e diversos grandes municípios, transferindo a seleção, conveniamento e acompanhamento das redes de Pontos de Cultura para estes entes federados. Esta medida permitiu ampliar a rede de 600 Pontos de Cultura para mais de 3.000, bem como ampliar recursos (uma vez que os estados e municípios agregam 1/3 do valor total da rede em contrapartida), eliminar a contrapartida dos Pontos de Cultura e reduzir a burocracia, tornando-a mais próxima das entidades. Mas estas redes seguiam com a modalidade convênio e subordinadas à lei 8.666, que rege licitações e contratos do Estado. Ao final de 2009, mais um avanço nas normas de gestão, a rede de 300 Pontos de Cultura do estado de São Paulo foi estabelecida a partir de premiação, em que a prestação de contas acontece por resultados e não por procedimentos burocráticos. Esta medida deveria ser estendida às demais redes, mas nesta época eu já estava de saída do ministério e, infelizmente, não foi aplicada pelas gestões que me sucederam. Outra ação indispensável seria transformar este acúmulo de teoria, conceitos e gestão em lei, o que acontece com a lei Cultura Viva, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), que tramita no congresso.

Passados nove anos desde a formulação inicial do programa, há que perguntar: o que representou todo este esforço em conceituação, gestão e aplicação desta política pública e qual o motivo de ele estar sofrendo tamanho retrocesso (do ponto de vista da prioridade do governo em relação ao programa) nos tempos atuais?

Gostaria de não ser eu a apresentar a resposta, sobretudo pelo meu envolvimento intelectual, político e afetivo com o tema. Mas, tentando despir-me desta roupa e assumindo-me na condição de historiador, vou arriscar uma análise.

1) Uma política pública como o Cultura Viva e os Pontos de Cultura só pode surgir em um momento político muito determinado. Não me refiro ao ponto de vista político-partidário, mas ao simbolismo da eleição do presidente Lula, em 2002, que abriu um novo ambiente para o protagonismo popular. A história de vida do presidente Lula se mistura com a própria história do povo e provocou uma simbiose que permitiu que as pessoas acreditassem mais nelas mesmas, colocando-se em movimento. Foi esse caldo de cultura que arou um terreno fértil para a experimentação de políticas públicas participativas e inovadoras;

2) A inclusão social foi a marca do novo ciclo governamental iniciado em 2003, os dados são incontestes. Todavia, apesar do forte componente inclusivo do Cultura Viva e dos Pontos de Cultura (“reconhecer e apoiar grupos sociais e culturais historicamente alijados”), o programa pretendia além, apresentando o componente emancipatório, alicerçado no tripé autonomia/protagonismo/empoderamento. Por diversas vezes, eu próprio dizia que o grande indicador de êxito do programa estaria na “perda do controle”, o que era uma contradição para alguém que ocupava cargo de gestão de Estado;

3) A lógica do Estado é a lógica da imposição e controle. Porém, a lógica do Cultura Viva era outra: “do Estado que impõe para o Estado que dispõe”, “do Estado que controla para o Estado que está disposto a perder o controle”. A imposição e controle do Estado são estabelecidos pela técnica (principalmente quando técnica se transforma em ideologia), que se traduz na burocracia, com suas normas, portarias, decretos e leis. E habitus (no conceito de Bordieu) da burocracia, como uma maneira de ser do aparato de controle estatal. Aí reside a contradição entre a lógica de um governo reformista e com proposta de inclusão social, mas subordinado à lógica de controle de Estado e de manutenção do equilíbrio de poder que o sustenta. Como o Cultura Viva se propunha ir além da inclusão, houve o embate e o programa travou;

4) Na primeira fase do governo Lula, sobretudo no Ministério da Cultura, havia algum espaço para experimentações de políticas públicas inovadoras, principalmente pela carga simbólica representada por um deslocamento de classes no exercício de governo. Foi nesta brecha que o Cultura Viva surgiu, como se tivesse entrado por uma pequena fresta de porta que logo mais se fecharia. Enquanto houve vontade política combinada com a baixa institucionalidade no Ministério da Cultura, foi possível avançar. Depois, tudo tornou-se mais difícil;

5) Sob o governo Dilma estas poucas frestas simbólicas foram ainda mais fechadas. E o império da técnica e da gestão se sobrepôs ao mundo dos sonhos (ou da experimentação, para manter o termo no léxico tecnicista). Não que tenha sido uma intenção perversa e premeditada, buscando conter inovações para além das formas tradicionais, mas foi da própria lógica do Sistema Estado, que precisa se auto-preservar. Cultura Viva diz respeito à pluralidade da vida, de suas expressões e desejos, mas o mundo da técnica transforma tudo em coisa, até mesmo a gratuidade da vida. Com isso, Oficinas de Conhecimentos Livres tiveram que ceder lugar à Economia Criativa (submetendo a Cultura à lógica da economia e não o contrário) e processos formativos horizontais (em que um Ponto contribuía com outro via afecções e as ideias se disseminavam de forma virótica) passaram a ser substituídos por formações verticais. E tudo amparado no discurso da qualificação técnica, em que os agentes do Estado são os qualificadores e os representantes da sociedade os desqualificados.

Observando hoje, com o máximo de isenção possível (ou pelo menos me esforçando para tanto), diria que são esses cinco fatores que nos levam a entender como aconteceu o ciclo de “encantamento/expansão/contenção/declínio” do Cultura Viva. Isso significa que a Cultura Viva morreu? De maneira alguma. Ela segue viva como sempre seguiu e, inclusive, em um novo e mais poderoso patamar. Vários Pontos de Cultura se empoderaram neste processo, se equiparam, avançaram na consciência política, saindo do estágio do “em si” para o “para si”. Houve o exercício do movimento coletivo, desencadeado pelas TEIAS (a última reunindo 5.000 pessoas em Fortaleza, em 2010), encontros, Teias estaduais, comissões representativas, que continuam. Também houve o exercício da ação reflexiva, com diversos seminários e publicações, as dezenas de teses e dissertações de mestrado, os livros publicados. Parte das entidades, diria que aquelas mais artificiais, com menos vínculos comunitários e mais assemelhadas ao funcionamento de ONGs tradicionais, já nem fazem parte do movimento dos Pontos de Cultura. Mas outro tanto, talvez centenas, ou para além de um milhar, mantêm-se, inegavelmente, em outro patamar de protagonismo na formulação e defesa de políticas públicas avançadas, inclusive ocupando espaços institucionais em governos, sobretudo municipais. Há o movimento latino americano pela Cultura Viva comunitária em 11 países, sendo que em quatro (Argentina, Colômbia, Costa Rica e Peru) com implantação efetiva, como política de governo, já com decretos ou projetos de lei em tramitação; e em maio de 2013 haverá o primeiro congresso latino americano da Cultura Viva, em La Paz, na Bolívia, com o tema “Cultura, descolonização e bem viver”. Tudo isso fornece um ambiente propício à retomada e avanço da Cultura Viva e muito além da própria ação do governo do Brasil.

Assim, uma história que começa a ser contada por um “Era uma vez…” segue viva e sem fim, como são os caminhos da cultura. E que outros contem e recontem essa história que é de todos nós.

Por: Célio Turino

 

Fonte: Revista Fórum

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