O sucesso de Janiel Sacramento no vestibular foi estampado até em outdoors no seu Estado, a Bahia.
Não é para menos: o jovem de 18 anos, de uma comunidade quilombola da cidade de Camamu, superou os desafios de estudar na pandemia e conseguiu uma vaga para cursar Medicina na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Quando o novo coronavírus forçou o fechamento das escolas, em 2020, Janiel, então no segundo ano do ensino médio em uma escola estadual, conta à BBC News Brasil que começou a se virar por conta própria. “Pensei: ‘não posso ficar sem estudar’. Peguei meu caderno, meu celular e comecei a buscar métodos de ensino na internet e aprendi a estudar sozinho.”
Como sua casa não tinha acesso à internet, ele baixava as videoaulas em redes de wifi públicas para assistir depois.
Prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ao mesmo tempo em que cursou o ano final do ensino médio e tirou nota boa o suficiente para entrar na lista de espera da UESC, na cota de estudante quilombola. A boa notícia veio em abril, quando Janiel pôde começar as aulas em Medicina.
“A escola pública muda vidas”, diz o outdoor com a foto de Janiel, comemorando sua aprovação – e que conhecidos dele já encontraram em cidades grandes da Bahia, como Salvador, Itabuna e Feira de Santana.
“É gratificante que várias pessoas estejam vendo (o outdoor). Fiquei mais feliz ainda pelo motivo, que é incentivar os alunos das escolas públicas do Estado, dar um ânimo a alunos que possam estar pensando em desistir, que não estejam vendo a educação como transformadora”, diz Janiel.
O problema é que os desafios do jovem não pararam na aprovação, mesmo se tratando de uma universidade pública.
Para cursar a UESC, Janiel precisou sair da casa da família e se mudar para Ilhéus. Sem dinheiro para custear por conta própria alimentação, materiais e o aluguel de R$ 600, o estudante diz que tem dependido de doações para continuar estudando.
“Estou sendo mantido por ajuda. Fiz uma vaquinha online, que não deu muito certo, mas teve gente que entrou em contato comigo pedindo meu Pix e me ajudou”, relata. “A gente luta tanto para conseguir a aprovação, e não imagina que o tormento vai continuar depois, mas continua — até mesmo piora.”
Sem previsão de receber auxílio
Sem saber até quando as doações continuarão vindo, Janiel se inscreveu nos programas de auxílio financeiro da universidade e do governo do Estado. Os pedidos, diz ele, foram homologados, mas ele não sabe quando vai começar a receber o dinheiro. “Pela experiência dos veteranos, sai no segundo semestre”, conta.
O caso de Janiel ilustra um problema que, segundo especialistas, é antigo, mas tem se tornado mais comum: a dificuldade crescente de jovens de baixa renda em se manter no ensino superior, tanto público quanto privado, em um momento de crise tanto para famílias quanto universidades.
A crise é mais aguda nas instituições federais. Em sessão na Câmara dos Deputados em junho, dirigentes dessas instituições disseram que seu orçamento de 2022 está R$ 1 bilhão menor (sem contar a variação da inflação) do que antes da pandemia, em 2019.
Além disso, enfrentarão um corte em suas despesas discricionárias (não obrigatórias) de 7,2% anunciado pelo governo federal.
Dados compilados por Gregório Grisa, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, no sistema Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público federal, mostram que a execução de assistência estudantil nas instituições federais está no nível mais baixo desde 2013, em decorrência da queda de repasses do Ministério da Educação.
As universidades estaduais, como a que cursa Janiel Sacramento, dependem de recursos de cada Estado. “Mas há uma tendência de certo enxugamento ou estagnação de recursos para assistência a estudantes”, afirma Grisa, que pesquisa políticas educacionais e financiamento estudantil.
Enquanto isso, a renda média dos brasileiros é a menor em dez anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com efeito mais significativo sobre as famílias mais pobres.
“Para a população de baixa renda, é uma corda bamba entre comer e consumir ou ficar na faculdade”, explica à BBC News Brasil Wilson Mesquita, pesquisador de políticas de acesso e permanência no ensino superior e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Risco maior de evasão
A tendência, nesse cenário, é que mais jovens desistam do ensino superior, seja porque não conseguem custear sua permanência ou porque precisam trabalhar.
É o caso de muitos dos jovens acompanhados pelo projeto Salvaguarda, que ajuda alunos de baixa renda no processo de vestibular e entrada no ensino superior.
“Sinto que aumentou entre os jovens, nos últimos anos, a necessidade de trabalhar não porque querem ter uma renda extra, mas sim para compor a renda básica de subsistência de suas famílias”, diz Vinícius de Andrade, criador do Salvaguarda.
Nas universidades privadas, isso tem se traduzido, nos dois últimos anos, na maior taxa de evasão – 36% – da série histórica, segundo o Semesp, que reúne instituições do setor. Em números absolutos, o Semesp estima que quase 3,5 milhões de estudantes tenham desistido de seus cursos em universidades particulares em 2021.
Os dados das universidades públicas virão à luz nos censos de educação superior dos próximos anos. Mas, em um contexto de pandemia, crise econômica e mais restrições ao auxílio estudantil, a expectativa é também de alta na evasão, mesmo que em níveis mais baixos do que nas instituições privadas, diz Grisa.
“A literatura mostra de forma clara que o auxílio está muito ligado tanto à permanência (dos estudantes de baixa renda) como também à melhoria do aprendizado“, afirma o pesquisador. “Porque a ausência do auxílio gera ansiedade, insegurança – e, em cursos complexos, como Medicina, isso se intensifica. Infelizmente, nesse caminho atual, teremos, proporcionalmente, mais problemas de inclusão.”
Para Wilson Mesquita, o risco é que o contexto atual faça retroceder o esforço de décadas de políticas públicas — como cotas raciais e programas de financiamento — para incluir jovens negros e de baixa renda no Enem e na educação superior brasileira.
“Quando você dá acesso para o jovem de baixa renda ao ensino superior, acontece uma revolução: ele muda a perspectiva da família, tanto em geração de renda futura quanto no imaginário das pessoas ao seu redor”, explica Mesquita.
Da mesma forma, “se esse aluno desistir do ensino superior, o efeito é desastroso — para o sonho do aluno e para todo o esforço da família em manter ele estudando. Isso frustra socialmente”.
‘Você precisa de alguma coisa?’
Janiel Sacramento, enquanto isso, diz que a satisfação em estampar um outdoor e ser apontado como exemplo se mistura com a desilusão das dificuldades financeiras.
“Isso mexe, traz uma certa frustração. Eles (governo baiano) pediram permissão para usar minha imagem, mas não tentaram saber: ‘beleza, você foi aprovado, sabemos do seu histórico, você precisa de alguma coisa?'”, diz.
“Sei que é difícil, o governo não vai fazer isso para uma pessoa só. Mas não só pra mim, porque não sou só eu nessa situação. A insegurança financeira inviabiliza (a universidade) para muitas pessoas, porque você não vai ficar sem se alimentar, sem suprir suas necessidades básicas.”
A Secretaria de Educação baiana informou à BBC News Brasil que desenvolve políticas de assistência e permanência para ajudar financeiramente os jovens que precisem de ajuda.
Segundo a nota, o programa Mais Futuro já beneficiou mais de 18 mil estudantes com bolsas de R$ 600 e R$ 300 desde 2017, e um novo edital está em fase de conclusão. Outro programa, Partiu Estágio, contratou mais de 15 mil universitários, de acordo com a secretaria estadual.
No entanto, a assessoria de imprensa do órgão não esclareceu quando é que jovens que tiveram seu benefício aprovado recentemente, como é o caso de Janiel, começarão a receber a ajuda. Nem esclareceu se os recursos de auxílio estudantil tiveram de ser enxugados.
“Quase todas as universidades públicas têm auxílio para jovens, mas o problema é o intervalo entre o início do curso e o pagamento dos auxílios. Isso é cruel para quem é de baixa renda. Porque qual jovem vai ter reserva financeira ou poupança para se manter nesse período?”, questiona Vinicius de Andrade, do projeto Salvaguarda.
Apesar de estar vivendo com o dinheiro contado, mês a mês, a depender da chegada das doações, Janiel faz planos para a carreira que escolheu.
“Minha comunidade é muito carente, e acho que tenho muito a entregar. Acredito muito no potencial humanitário da Medicina de impactar a vida das pessoas positivamente. É o meu projeto de carreira principal”, diz ele.
– Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62222214