O feminismo em Star Trek

Como uma série de ficção científica do sonho americano revolucionou o papel da mulher na sociedade.

Por Marta Preuss, no Medium Brasil

— Mamãe! Corre aqui! Tem uma mulher negra na televisão e ela não é empregada!

Foi isso que Whoopi Goldberg disse quando assistiu Uhura em Star Trek. Tinha sido a primeira vez que ela tinha visto uma negra sem estar em posição submissa. Uhura era tenente de comunicações da Enterprise, uma nave com missão científica de cinco anos.

Nichelle Nichols, a atriz que interpretava a heroína de Whoopi, não se sentia tão bem assim. Pensou em sair da série, dizendo que não tinha um papel de destaque. Mas uma conversa com o próprio Martin Luther King a fez mudar de ideia.

Desde a série clássica, Star Trek sempre teve uma visão muito igualitária da sociedade. Diversas raças (tanto humanas quanto extraterrestres) conviviam em harmonia em busca do conhecimento científico da galáxia, participando de uma aliança — a Federação dos Planetas Unidos — buscando interesses em comum que beneficiam a todos os povos.

Além da própria Uhura, a auxiliar do capitão e a enfermeira da nave não devem em nada em competência e nunca têm seu gênero associado ao seu trabalho.

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Next Generation

A franquia retornou no final dos anos 80, após termos apenas filmes, mas não decepcionou e continuou nos presenteando com fantásticas personagens femininas, bissexuais, trangêneras, assexuais e etc.. Lançada em 1987, a Next Generation trouxe personagens mais fortes que nunca para o horário nobre da TV.

Entre as personagens principais temos Deanna Troi, conselheira; Beverly Crusher oficial médico-chefe da nave e Tasha Yar, chefe de segurança. Vou falar devagar: CHEFE. DE. SEGURANÇA. Ela teve problemas com os diretores e saiu nas primeiras temporadas e foi substituida pelo Worf. PELO WORF.

Apesar das roupas curtas ou apertadas, elas nunca foram sexualizadas. Seu valor se mostra na luta física, mental ou de controle. Todas elas têm altos cargos na nave, como de capitã, algumas vezes.

Whoopi não perdeu a oportunidade de participar em Next Generation, a missão que aconteceu depois da série clássica. Ela representava a bartenderGuinan, misteriosa e conselheira, órfã de uma raça atacada pelos Borg e que vive milhares de anos.

Não podemos esquecer também da Dra. Pulaski, que substituiu a Dra. Crusher por um ano, cuja personalidade batia de frente com o capitão Picard. Era uma mulher de pulso firme, sarcástica e que detestava usar o teletransporte. Uma mulher de fibra, divorciada várias vezes. Foi uma ótima ideia colocar uma personagem que mostra que o divórcio não é o fim da linha para uma mulher.

Ainda assim, todas elas ficam com um parceiro igualmente importante — seja o capitão ou o comandante. Não que precisavam disso. Inclusive, deixam claro que elas são donas de si e não precisam ser sustentadas por alguém.

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Deep Space Nine

Conhecida por muitos como a série mais chata de Star Trek, a DS9 engrena só pela metade da quinta temporada. Suas personagens mulheres, entretanto, não são menos influentes e fortes.

Kira Nerys, por exemplo, é sobrevivente da ocupação em Bajor, seu planeta natal e agora precisa se acostumar com o controle da Federação sobre sua vida. Brigona, acredita firmemente em seus ideais e no que considera correto. Dona de um humor ácido, nunca se deixa intimidar.

Dax, por outro lado, é mais calma. Ela tem dentro de si um simbionte que traz suas vidas passadas, o que a faz ter mais de 300 anos. Seu hospedeiro antigo era um homem, Curzon, que era amigo do capitão Sisko, mas ela teve outras hospedeiras mulheres. Dax é inteligente, amável, dessas garotas que jogam com o dono do bar e bebe com os marinheiros. Sempre responsável e fiel, se apaixona por Worf (SIM!) e mesmo assim nunca deixa ser diminuída. Dax tem personalidade forte e não admite que duvidem disso. Foi a personagem de Dax que protagonizou um evento que chocou a audiência conservadora de Star Trek com um beijo lésbico.

Como não falar de Keiko O’Brien, mesmo sendo personagem secundário? A herbologista veio da Next Generation acompanhando o marido Miles, mas nunca abdicou de seus hobbies e de sua personalidade, mesmo sendo mãe de duas crianças. Keiko e O’Brien dividem tarefas e trabalham em equipe, um exemplo para todo casal. E quando surgiu uma oportunidade de trabalho em Bajor, ela não pediu autorização do marido.

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Voyager

Voyager passou na TV a partir de 1995, durante as usuais sete temporadas. A missão para aprisionar os renegados Maquis parte de Deep Space Nine e acaba parando no Quadrante Delta da galáxia, cuja viagem de volta para a Federação levaria 70 anos. Ela retoma o instinto de exploração espacial, tendo desta vez uma mulher no comando, a capitã Kathryn Janeway, uma cientista e excelente estrategista, que galgou posições até chegar ao posto de capitã.

Apaixonada por café e fiel defensora de sua tripulação, Janeway é o tipo de mulher que não leva desaforo para casa, protege os seus, mas os pune em caso de falta grave e tenta de tudo para seguir os preceitos da Frota Estelar, mas várias situações mostram que é preciso fazer exceções em casos extremos.

A nave conta com uma meio humana/meio klingon como chefe da engenharia e uma humana assimilada pelos Borgs como responsável pela astrometria. Voyager é a única série de Star Trek a passar no Teste de Bechdel em TODAS as suas temporadas, e na quinta todos os episódios, absolutamente todos, passam no teste. Não é de se espantar, então, com o fato de Voyager ser a série mais odiada pelos talifãs de Star Trek. Com tanta mulher no comando, com tanto diálogo entre mulheres que não se refira a eles, mas que lide com ciência astronomia e táticas de batalha, é fácil compreender sua misoginia. Além disso, ela apresenta personagens que quebram padrões da ficção científica como um vulcano negro, um indígena norte-americano como o segundo oficial da Voyager e um médico holográfico que ganhou o status de tripulante.

Temos um casal na nave, formado por B’Ellana Torres, chefe da engenharia e Tom Paris, um casal que não fica junto de imediato. Vemos como o isolamento no Quadrante Delta atrapalha muitos relacionamentos entre os tripulantes e como é difícil se manter numa missão com tantos obstáculos. E Sete de Nove, apesar de sexualizada na série (o que alavancou a audiência) é uma personagem fantástica, tentando refazer o caminho que a leva de volta à humanidade. Ela reluta em entender seus sentimentos, tem dificuldades em chorar e de se apaixonar. Ela representa uma mulher que teve sua personalidade suprimida por uma força muito superior — os Borg — e agora luta para se livrar das últimas amarras. Qualquer semelhança com a realidade imposta a milhões de mulheres…

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Enterprise

Enterprise volta um pouco no sentido da representatividade, como se anunciasse a tendência dos novos filmes de Abrams. Enquanto nas séries anteriores temos uma grande parcela de mulheres, negros e orientais, personagens assexuados e alienígenas, Enterprise focou nas aventuras dos homens cis brancos e héteros, dando destaque para a personagem de T’Pol, que também seguia a tendência de Sete de Nove com seu uniforme coladinho. A primeira oriental a aparecer numa ponte de uma nave estelar tem um papel bastante secundário. Esta personagem, a Alferes Sato, é só uma das desenvolvedoras do famoso tradutor universal de Star Trek, mas é pouco explorada durante toda a série.

T’Pol, por sua vez, merece algum destaque. Ela é o contraponto frio e racional que bloqueia a excessiva emoção do capitão Archer e mostra como é a parcela feminina de Vulcano, onde não há distinção de gênero entre inteligência e racionalidade de seus indivíduos. Infelizmente, por ser sexualizada como Sete de Nove, ela se apresenta mais como um ingrediente afrodisíaco e fantasioso para a série do que uma genuína representante do gênero feminino na franquia. Ela não está lá para nos representar como Janeway ou Uhura, está lá para agradar e enfeitar a série. Sua personagem não se desenvolveu o suficiente como Sete de Nove.

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Filmes novos

Às vezes concordo com aquela minha amiga e realmente acredito que retrocedemos em alguns pontos. Os filmes novos, de JJ Abrams, tiveram um burburinho na mídia por exibir o corpo seminu de uma enfermeira e da própria Uhura sem a menor necessidade.

Desejo do homem branco cis hétero. Dilemas do homem branco cis hétero. Piadas do homem branco cis hétero. Homens brancos cis hétero. Homens brancos cis hétero everywhere.

Talvez estejamos em uma época onde as pessoas se assustam em arriscar. Talvez estejamos mesmo muito chatos com tudo, não aceitando racismo, machismo, homofobia e outros preconceitos injustificáveis como antes. Talvez os escrúpulos para vender nunca foram tão baixos ou talvez seja simplesmente outra coisa, e não é mais a nossa Star Trek The Original Series.

Mas dói. Porque a essência de Star Trek sempre foi respeitosa, uma essência de inclusão. E aí de repente somos de novo pedaços de carne que devem ficar quietas para os homens falarem. Sigh.

Conclusão

Star Trek foi uma série de ficção científica sempre a frente de seu tempo, não apenas pela tecnologia de imaginar celulares, tablets, google glass, kindlese outros, mas também por imaginar um futuro sem machismo. Mulheres e homens podem exercer as mesmas funções e seu gênero/falta de gênero e nem mesmo sua espécie altera suas capacidades. Um futuro onde um negro era capitão de uma base estelar, onde uma mulher é capitã de uma nave e lidera os seus de volta para casa. Isso é igualdade.

Star Trek não é feminista apenas por ter mulheres no elenco; mas por mostrar que estas mulheres são fortes, independentes e conseguem falar de outro assunto que não seja homens em várias cenas. É impressionante a quantidade de mídia que consumimos que não passa por este teste simples.

Quando você tiver dúvida se uma mulher pode ou não fazer alguma coisa se pergunte: o que Gene Roddenberry faria? Não, ele não, mas o que suas personagens fariam? Na verdade não se pergunte nada: faça o que quiser. Você não é escrava do seu gênero.


Nota:

Fiz esse texto com a Sybylla (obrigada!) para provar um ponto: mulheres podem fazer tanto quanto homens, até em uma série com fãs mais velhos e bem reacionários em sua maioria. A inspiração veio em um evento que fui e o palestrante foi bem preconceituoso com diversas classes que saíam do estereótipo homem-branco-cis-hétero-classe-média. Pensei: se este homem preconceituoso pode palestrar em um evento destes, eu também posso para mostrar o quanto ele está errado.

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