O firewall dos monopólios contra a comunicação democrática na América Latina

Grandes veículos de comunicação estão monopolizados e o controle das maiores empresas do ramo no planeta estão sob controle do capital financeiro, através do poder de voto outorgado pelos pacotes acionários de alguns poucos fundos de investimentos, cuja única lógica é a expansão dos negócios

Foto: SIRASTOCK VIA GETTY IMAGES
Nos transformamos em seres midiáticos, vivemos online, conectados, somos produtos desses meios e é muito pouco do que fazemos que não tem nada a ver com eles. Ademais, a comunicação superou os limites do tempo e do espaço. O mundo digital da comunicação está suplantando o velho mundo analógico. Tudo é imediato e aproximado. Os bits de informação nos invadem por todos os poros. São 55% as pessoas do planeta que já têm acesso à internet. Já se foi aquele curto período em que a Internet parecia ser o que prometia: uma fabulosa rede de intercâmbio de conhecimento. Hoje, através da rede, viaja cada vez mais lixo. Não podia ser de outro modo.

Conhecimento é poder, e o poder não quer ser compartilhado, por isso os que o detém tentam impedir que esse conhecimento seja democratizado. O controle do conhecimento é um fato histórico. O antigo rol das tradições, dos reis e dos sacerdotes hoje foi assumido pelas corporações. Falando só do mundo ocidental – hoje em decadência, mas ainda condicionante –, as cinco principais corporações da Internet (Alphabet-Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), e também as produtoras de conteúdo (Disney, Time Warner, Comcast) e proprietárias dos sistemas de comunicação (AT&T, Verizon), só para citar algumas, configuram grande parte de quase tudo o que se vê – e, obviamente, o que não se deve ver. Estas corporações, por sua vez, são controladas por fundos de investimentos. Os investidores institucionais (Vanguard, BlackRock e State Street Global Advisors) são os que sempre estão manejando os trilhões de dólares, os mesmos que são os principais acionistas de 90% das empresas listadas no índice SP500.

Ou seja, os grandes veículos de comunicação estão monopolizados e o controle das maiores empresas do ramo no planeta estão sob controle do capital financeiro, através do poder de voto outorgado pelos pacotes acionários de alguns poucos fundos de investimentos, cuja única lógica é a expansão dos negócios.

O lucro dos investidores chega através dos dividendos e do valor das ações, que dependem, por sua vez, dos lucros de todas estas empresas. Em sua grande maioria, estes lucros e o valor de mercado dependem do número de usuários. Por isso, a lógica das empresas é arrebatar os usuários da concorrência, até liquidá-la. A estratégia dos investidores é colocar fichas proporcionalmente em todos os números, para não perder nunca. A lógica do monopólio é a do negócio e a lógica do negócio é o monopólio.

Isso mostra a mentira da “livre concorrência” e do “livre mercado” ou “livre comércio”, falácias, ficções sobre a qual está baseada toda a ideologia capitalista, que na verdade, em seu próprio fundamento, é absolutamente monopólica.

Neste lugar que costumamos chamar de “Nossa América” – que nunca foi e ainda não é “nossa” –, os grupos hegemônicos que controlam a maior parte dos meios e a opinião pública são mais provincianos, embora já se vislumbre a tendência de um aumento da participação estrangeira. Em muitos deles (Clarín, Globo, Cisneros, Santo Domingo-Valorem, González e Telmex), a maioria acionária é familiar. As poucas exceções são a Televisa (61% controlada por fundos de investimentos e bancos), o Grupo Prisa (com maioria acionária de um fundo abutre estadunidense, embora antes com maioria proprietária da família Polanco) e a Telefónica (controlada por bancos e fundos de investimentos). Ainda assim, todos difundem e utilizam os mesmos canais e conteúdos.

Esta é a ordem a subverter. Este é o firewall, a muralha a derrubar para que a comunicação seja democrática, feita por todos e para todos.

Eles e nós

Eles têm as licenças, a tecnologia, os canais, as leis, os jornalistas canalhas, o dinheiro inventado e mortífero da banca. Têm a censura, as notícias e as histórias falsas, têm os algoritmos, a propaganda e a confusão. São os donos da mentira, mas também os donos da verdade (como já dissemos), para não perder nunca.

E nós? Como vamos a derrubar a muralha?

Antes de tudo, devemos entender claramente as possíveis ações a tomar diante do dilúvio ácido da manipulação e do controle do monopólio.

Consumo

Nós lemos, assistimos, escutamos, consumimos informação, e – em maior ou menor medida – esta é a principal ação que realizamos diariamente. Mas, onde o fazemos é outra coisa. O monopólio quer que o façamos em suas milhões de sucursais. Nós podemos escolher consumir em outros lugares. Quanto mais consumamos dos “nossos” meios, menos consumimos dos deles. Está claro que isso tem seus limites, mas é imprescindível variar a proporção, combater a estupidez e a desinformação, estragar o negócio deles, em parte, negando a nossa colaboração.

Outro aspecto do consumo que devemos debater é: o que nós estamos assistindo, lendo, escutando, e para quê?

O monopólio oferece entretenimento, embora a repetição o torne maçante. Todos já sabemos que o protagonista rico vai se apaixonar pela empregada pobre e ter com ela algum filho ilegítimo, alguma bruxa malvada vai intervir na trama, ou algo nesse sentido. Tudo previsível. Com respeito à informação, eles se preocupam de entregar aos que pagam aquilo que eles querem. Por isso é desinformação. Inclusive a crítica às suas agendas é bem-vinda por eles, porque as instala, e as controla.

Por último, como nós consumimos essa informação? Devemos começar observando a intenção, que é o aspecto primário, e não o conteúdo em si, que é secundário. Exercitar um olhar atento diante do que se vê e se escuta, ver quem está dizendo e para quê está dizendo, é um bom anticorpo contra a manipulação.

Hoje, a consigna é a de que “os meios do monopólio são o ópio do povo”. Não quero nada deles! A melhor resposta, na verdade, é esvaziar os seus temas e modos de defender sua agenda. Para isso, temos que consumir nossas próprias agendas. E quais são elas? A dos direitos humanos: paz, distribuição do bem-estar, liberdade, equidade de gêneros e diversidade, só para mencionar os principais.

Reprodução

Esta é a segunda ação, numa escala quantitativa. Não só consumimos dados, também os reproduzimos. Compartilhamos postagens, reenviamos fotografias e vídeos, conversamos sobre certas coisas. Esta reprodução também pode estar colaborando com o regime monopolista, ou com os revolucionários da causa da democratização. Retransmitir agendas e fontes próprias daquela vertente na qual acreditamos é o que faz a diferença.

Produção

Esta é a parte mais linda, a mais criativa, a que permite que desapareçam as velhas barreiras entre o trabalho intelectual e o manual, a que torna realidade o sonho do artista que há em cada um. A produção de conteúdos nos transforma em atores, sujeitos, protagonistas da revolução. As novas gerações, nascidas em meio ao avanço vertiginoso da tecnologia comunicacional, consideram esses instrumentos digitais, que vão surgindo e se aperfeiçoando, quase que como suas próteses permanentes.

Entretanto, o sistema pondera positivamente sobre a atomização, a produção individual, isolada e ocasional, e isso não danifica nem agrega dados e minutos às suas arcas. Para vencer o firewall, necessitamos produção organizada, articulada, permanente e de caráter revolucionário.

Necessitamos criar e fortalecer rádios, canais de televisão, agências de notícias, sítios web e todos os tipos de meios nossos, que se constituam em alternativas reais ao monopólio.

Para que isso seja possível, é preciso haver alianças de comunicação poderosas, articulações que possam produzir de forma colaborativa, capazes de compartilhar e difundir o conteúdo massivamente.

O conceito é o de unidade na diversidade, para que cada meio influa em sua área de impacto real, e que assim possamos chegar a grandes números.

Necessitamos servir e nos servir das mudanças políticos que apostem em proibir a concentração de meios, e que ajudem a abrir a porta para um novo sistema, necessitamos que os militantes da mudança se sirvam dos nossos meios, numa aliança de reciprocidade.

Somos criticados por nosso caráter endógeno, por falar para os nossos, para os convencidos, mas na verdade sequer chegamos a eles, ou ao menos não tanto quanto os outros chegam.

Falar sobre o que queremos não é endógeno, se aproveitamos para fortalecer o seu alcance, para que sejam cada vez mais “os nossos”, o público para o qual falamos. Para isso, é preciso: quantidade, qualidade, protagonismo massivo dos jovens (isso assegura estilos e narrativas sintonizados com a época), organização horizontal e democrática, produção em todos os suportes, aperfeiçoar a técnica, atuar em rede mundialmente, capacitar. Finalmente, subverter a ideia de que o capitalismo voraz e a concorrência mortal são a única possibilidade de vida em comum para a espécie humana, e propor como alternativa uma vida com a maior coerência possível, através das alternativas que planteamos.

O objetivo é esclarecer, e chegar aos 99%, os oprimidos por um sistema de dominação doentio, que prioriza o dinheiro como motor e objetivo da vida. Avançar sobre a mentira e exigir um novo modo de existência. Criar um mundo novo é factível, a partir da utopia que se instala como imagem possível nas consciências de milhões de pessoas, sobretudo das e dos jovens. Também devemos contribuir para criar e difundir a utopia como única saída a esta civilização decadente de compra-venda.

Nossos meios de comunicação e sua articulação crescente são o meio para fazê-lo.

Javier Tolcachier é investigador do Centro Humanista de Córdoba, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli

 

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