O inoportuno, sempre ele

Falar de racismo, e de seu enfrentamento, é sempre inoportuno. Nunca é a hora nem o lugar, no caso brasileiro. Uma enviada especial de grande jornal paulista, no entanto, sente-se à vontade em Chicago para falar de assassinatos de negros, segregação racial, racismo, criminalidade, desemprego, escolas públicas precárias, população carcerária, desumanização, ausência do Estado, desesperança.

Fonte: Brado Negro

Cláudia Trevisan, enviada especial de “O Estado de S. Paulo” a Chicago, ouviu e registrou depoimento de uma fonte negra, Henry Clark, de 69 anos, e “Em sua opinião, o governo do primeiro presidente negro dos Estados Unidos não alterou as relações raciais no país”. E Henry Clark acrescentou: “Nós nunca fomos vistos como americanos. Nós somos apenas residentes no país, não somos cidadãos.” (OESP, edição de 15.01.2017, p. A10.)

Você fica sabendo também que há uma relação entre a presidência da República e o padrão vigente de relações raciais. Ou seja, políticas públicas podem alterar relações raciais. Veja quanto coisa você aprende numa reportagem do Estadão sobre o tema racial, quando o foco da reportagem é os Estados Unidos!

Para o jornalismo que se pratica no Brasil é fundamental se desfazer desse viés utilizado pela enviada especial. Na reportagem do Estadão, o interesse obviamente não são os negros de Chicago, nas “o negro” de Chicago, Barack Obama, cuja passagem pela presidência deve ser devidamente espinafrada.

Mas não só o jornalismo. Se você assiste a um debate sobre a situação carcerária na TV (chacinas, degolas e tudo o mais), testemunha um enorme esforço, uma dificuldade muito peculiar de tratar a questão racial, subjacente todo o tempo ao tema em discussão. Um tipo de conhecimento que parece essencial à realidade em debate, mas que forças ocultas impedem sua abordagem.

Em um programa de TV da GloboNews, Ayres Britto, ex-ministro do STF, disse que as práticas desumanas estão enraizadas entre nós: “Somos persistentes nessas práticas de violência, que estão enraizadas na sociedade brasileira”. Outro participante, o advogado Oscar Vilhena, referiu-se “à desigualdade profunda e persistente e a valores hierarquizadores”.

Práticas referidas estruturalmente viraram uma estranha moda entre nós. O racismo e o sexismo são suas principais vítimas. Supõe-se assim, creio eu, evitar questionamentos e acusações de superficialidades. Mas, como vimos, podem-se banalizar aparentes incursões à estrutura profunda, que acabam tendo pouca ou nenhuma serventia.

“Casa grande e senzala” – quem aguenta mais essa antítese para explicar os males da estrutura social do presente (aqui e agora) nos textos jornalísticos? O jornalismo mais crítico na conjuntura brasileira está imbuído de uma certeza: o escravismo é a causa profunda de nossos males.

Voltemos ao enfrentamento do racismo, ou melhor, a sua ausência nos debates. Presume-se, ao silenciar sobre racismo, que não se possa ir além da constatação de que a maioria dos encarcerados são pretos e pardos.

Tomada como causa relevante, e não como resíduo do escravismo, a hierarquização do humano pela cor da pele, recorrente entre nós, propiciaria uma perspectiva que poderia ajudar a enquadrar melhor nossa “tradição de criminalização e encarceramento”, “as práticas desumanizadoras”, os “valores hierarquizadores”, que ficaram boiando no debate da Globonews. Ayres Britto chegou a dizer, diante das persistências que apontava, que nosso DNA não parece bom.

É esse tipo determinado de resistência, que envolve diferentes posições no espectro político, acerca da introdução no debate do racismo como uma variável capaz de explicar adequadamente dimensões essenciais, que precisamos superar. Sem trazer à tona a opressão racial e sem confrontar práticas discriminatórias, não avançaremos.

Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo

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