O jornalismo justiceiro faz mais vítimas

A tragédia de Castelo do Piauí não tem fim. Três meses depois das agressões que vitimaram quatro meninas, resultando na morte de uma delas, os atos de barbárie se sobrepõem

Por Maria Carolina Trevisan*, especial para Jornalistas Livres

Até 27 de maio, o município de Castelo do Piauí, a cerca de 180 km de Teresina, era desconhecido por grande parte dos brasileiros. Entrou para o mapa do Brasil por causa do estupro coletivo de quatro meninas. Supostamente, os autores da agressão teriam sido quatro adolescentes e um adulto.

Com a repercussão do caso, a polícia se apressou para achar culpados e identificou primeiro os adolescentes. Com o andamento rápido das investigações, descobriu-se a participação do adulto, classificado pela polícia e imprensa como “traficante”, como se esse “título” bastasse para comprovar a culpa do homem. Em pouco tempo estavam presos os monstros. Cumpriu-se, assim, a desesperada busca pela sensação de justiça.

Nos primeiros dias após as agressões, os meios de comunicação nacionais silenciaram. Era como se o que acontece em um rincão do Piauí não tivesse suficiente interesse para seus leitores e espectadores. Mas a participação de adolescentes como agentes das agressões dias antes de a Câmara dos Deputados votar a redução da maioridade penal chamou a atenção da imprensa nacional.

Como um baluarte do jornalismo justiceiro, a revista Veja chegou a estampar em sua capa, em mais de 1 milhão de exemplares, os rostos dos quatro adolescentes, dando como certa e comprovada a autoria das agressões. A publicação ignorou leis. A Constituição Federal estabelece, no artigo 5o, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Não cabe à Veja julgar a autoria dos crimes. O Estado de Direito no Brasil garante o que se chama “presunção de inocência”. Ou seja, todo mundo é inocente até se provar o contrário.

“Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa.” Artigo 5o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)

A revista da Editora Abril também infringiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Convenção para os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990, ao identificar os adolescentes por meio de fotos e iniciais.

“Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência.”
Parágrafo único do artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente

“As crianças têm direito a proteção contra a intromissão em sua privacidade, família, lar e correspondência, bem como contra a difamação e calúnia.”
Convenção para os Direitos da Criança

O Coletivo Intervozes, organização da sociedade civil que trabalha com o direito à informação, entrou com representação contra a revista Veja por conta dessa reportagem. A Defensoria Pública de SP também move ação contra a Editora Abril e sua publicação.

Sede de justiça

Area de pintura rupestre em Castelo do Piauí
Area de pintura rupestre em Castelo do Piauí

A apressada punição dos supostos autores do crime seria um desfecho aceitável caso os procedimentos de investigação e justiça tivessem sido observados, especialmente no que se refere aos direitos humanos. Não foi o que aconteceu. Trinta e três dias após as agressões, o adolescente G., de 17 anos, morreu espancado — enquanto se encontrava sob tutela do Estado -, no Centro Educacional Masculino (CEM), em Teresina. Não se sabe se o adolescente foi morto à noite ou na hora do banho — conhecido momento de vulnerabilidade em que os abusos costumam acontecer nas unidades de internação de adolescentes. Alega-se que a unidade estaria superlotada e por isso G., apesar das ameaças de outros jovens, foi colocado na cela que abriga internos que cometeram atos infracionais graves como homicídio e estupro.

G. era o delator do crime de estupro do qual teria feito parte. “A sede pela descoberta do autor pode prejudicar a busca daquilo que chamamos de Justiça”, afirma Riccardo Cappi, doutor em Criminologia e professor de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Com o crime “solucionado”, todos poderiam dormir sossegados. “Nos interessa achar um culpado que esteja distante de nós. O castigo desempenha assim a função de afastamento da responsabilidade coletiva”, alerta Cappi.

Nesta segunda-feira, 10 de agosto, o programa de exibição local “Bancada do Piauí”, da TV Antena 10, afiliada da Rede Record, revelou a participação do PM Elias Júnior como mandante do estupro coletivo, conforme informações do subcomandante da Polícia Militar Lindomar Castilho. Em conversa gravada com funcionários do CEM, G. afirmou que o PM o contratou por 2 mil reais para executar atos infracionais na cidade. Elias Junior foi afastado da corporação e está à disposição da Corregedoria.

“Ele queria que nós ‘fizesse’ um crime lá em Castelo que nunca foi feito. Todo crime lá em Castelo sempre é descoberto. Ele pensou assim, ele vai preso, vai pro CEM, morre lá e eu fico de boa com meu dinheiro”, revela a gravação de conversa obtida pela TV Antena 10.

A Defensoria Pública do Piauí entrou com pedido de absolvição dos três adolescentes envolvidos no caso e do adulto, que até ontem seria o mandante do crime.

Não houve qualquer repercussão na mídia nacional comparável à cobertura na época dos fatos. Como se nós, jornalistas, não fôssemos mais responsáveis pela história que ajudamos a montar — e que agora entra numa reviravolta ainda mais cruel. Se o papel principal do Jornalismo é fiscalizar o Poder e acompanhar as políticas públicas, neste caso, falhamos muito. Deixamos que a ponta mais frágil do enredo ficasse exposta a qualquer violação.

Teria sido bom jornalismo, comprometido com o respeito à dignidade da pessoa, procurar entender de que maneira se deram os depoimentos; compreender quem eram as partes interessadas em que o crime fosse assumido por meninos e por um “traficante”; questionar a rápida conclusão do caso; identificar as políticas sociais e as falhas da rede de proteção de crianças e adolescentes; contextualizar a situação social de um município que tem Índice de Desenvolvimento Humano baixo (IDHM 0,587, o que coloca Castelo do Piauí em 4.467ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros) e com cerca de 20% da população em situação de extrema pobreza (renda per capita mensal abaixo de 70 reais).

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Em setembro, nos dias que antecedem o feriado da Independência do Brasil, Castelo do Piauí celebrará mais um“Cachaça Fest”. Ao lado das visitas a pinturas rupestres, a cachaça é o principal atrativo turístico do município. O que isso tem a ver com a tragédia das meninas e com a injustiça relacionada aos meninos do Piauí? Muito. Principalmente em um lugar em que a presença do Estado não se faz efetiva, nem em segurança, nem em educação, nem em saúde, nem nas condições de trabalho.

Nessa sequência de barbáries mais uma vida sucumbiu. Enquanto a banalização do sangue continuar a exercer fascínio, estaremos sujeitos a esse tipo de injustiça. É a morte como pena. Para que os leitores, repórteres e editores de Veja — e demais publicações que negligenciaram essa cobertura — durmam tranquilos.

*Maria Carolina Trevisan é jornalista, repórter do coletivo Jornalistas Livres, coordenadora de projetos da ANDI, pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre o Crime e a Pena da DireitoGV e Jornalista Amiga da Criança.

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