Magistrada foi absolvida recentemente pelo CNJ por soltar pessoas que estavam presas, mas já haviam cumprido sentença
Por Juliana Gonçalves Do Brasil de Fato
Conhecida por seu engajamento em defesa da democracia e dos direitos humanos, a juíza Kenarik Boujikian foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na última terça-feira (29), depois de ser processada e condenada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A condenação ocorreu porque ela concedeu liberdade a 11 pessoas que estavam presas provisoriamente, mas já tinham cumprido a pena fixada em suas sentenças.
A juíza foi acusada de ter tomado a decisão de forma monocrática, ou seja, ter decidido sozinha. Nenhum dos detentos liberados por ela possuía advogado particular para solicitar o alvará de soltura. Eram pobres e dependiam da Defensoria Pública.
A magistrada recebeu a reportagem do Brasil de Fato em seu gabinete, no centro de São Paulo, e falou sobre a formação do judiciário, o encarceramento em massa no Brasil, entre outros assuntos. Sobre a seletividade penal, Kenarik citou o poeta romano Ouvídio: “O tribunal está fechado para os pobres”.
Brasil de Fato: Como recebeu a notícia favorável do CNJ?
Kenarik Boujikian: Recebi com muita alegria e entusiasmo. Foi um julgamento histórico, é um marco. O CNJ assumiu publicamente que não é admissível que o juiz seja cerceado na sua forma de pensar o Direito. A independência judicial foi a grande questão de todo esse processo, e o CNJ reafirmou que ele é um órgão que deve proteger a independência judicial, que não é um atributo para os juízes, mas para o cidadão, que tem direito de ter juízes que possam julgar sem qualquer tipo de pressão interna ou externa.
O que o caso fala sobre o encarceramento em massa que ocorre no Brasil?
O processo teve como pano de fundo a questão carcerária, que, efetivamente, é um caos no Brasil, que tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. E também pela questão dos presos provisórios. Um grande percentual dos presos ainda não tem uma sentença definitiva; esse percentual é de cerca de 40%. Além do que, o direito penal é seletivo, ele tem como personagem principal jovens, negros e periféricos. Isso é um marco em todo o sistema.
Quais seriam as saídas para isso?
A primeira questão a ser observada é que existe um aprisionamento excessivo. Aqui no Brasil temos uma legislação que permite o apenamento, mas não na forma de prisão. Outras formas de penas como as substitutivas são necessárias.
Existe vontade política para mudar a forma como o Poder Judiciário enxerga o encarceramento em massa?
O ambiente judiciário é muito conservador no sentido de entender a prisão como única solução, o que é absolutamente um equívoco social, econômico e humano. É bem difícil encontrar uma solução que não passe por uma reformulação desde a preparação de quem vai ser o juiz, o promotor e o advogado. As mudanças são necessárias e devem ser profundas. O Judiciário é um poder de Estado, portanto, ele exerce e faz política. O juiz está preso à Constituição Federal, de modo que quando ele exerce esse poder político, ele tem que fazer como está determinado na Constituição. O estado atual do Brasil pós-golpe se caracteriza justamente pela afronta à Constituição.
O Judiciário é o único poder não republicano no Brasil, como a senhora avalia isso?
O Judiciário é, em alguma medida, um dos únicos poderes que não tem controle social, porque os outros têm o controle por meio da eleição ou tribunais de conta. Quando teve a reforma, foi criado o Conselho Nacional de Justiça, ele não deixa de ser uma forma de controle, mas não é suficiente. Quase todos os seus membros são indicados pelo próprio Judiciário e pelas cúpulas do Judiciário. Esse quadro que o Brasil vive mostra bem que é preciso repensar a estrutura.
A senhora pode falar mais sobre a seletividade penal?
A sociedade enxerga que o Judiciário tem dois pesos e duas medidas. Há uma frase do Ouvídio que diz: “todas as portas estão fechadas para os pobres”. Essa realidade continua sendo frequente no dia a dia da população que não enxerga a Justiça como um poder que lhe dê suporte e apoio. Ao contrário, para a maioria é só para lhe afastar da própria sociedade.
E como você avalia o fato do encarceramento feminino no Brasil ter aumentado cerca de 700% nos últimos 16 anos?
É altamente preocupante, porque esse índice é assustador e tem relação sobre como a mulher recebe suporte da sociedade. Muitas pessoas acham que a mulher é presa por razão do companheiro ou marido, mas não é necessariamente assim. Existe uma parte que é dessa forma, mas a grande maioria não tem nenhum acesso a nenhuma condição de trabalho e ela acaba arrumando uma forma de sobrevivência.
É essa a realidade das mulheres presas, em geral jovens, 70% com filhos pequenos que dependem dela. O Judiciário ainda não sabe lidar com isso, não conseguiu enxergar que essa mulher não tem potencial de causar violência. Fica presa, o Estado gasta um dinheirão e é tudo inútil, não traz bem nenhum. Para que tá servindo a prisão dessa mulher?
E qual é a relação do encarceramento com a política de drogas?
Essa política de guerra às drogas encarcera mais jovens e negros. De cada três mulheres presas, duas são negras. De fato, essa política não resolve em nada, não se combateu coisa alguma. Por outro lado, o combate gera violência e quem sofre dessa violência é a população que está mais vulnerável, que são os periféricos, pobres e negros. O que mostra tudo isso? Que essa política não dá certo no Brasil ou em outros lugares do mundo. E que muitos países estão pensando essa situação com a legalização das drogas, especialmente a maconha… Um caminho que tem menos gasto, que é mais humano. É preciso seguir outros passos.