O pedido público de desculpas é um ato predominantemente masculino. E a misericóridia é mais um dos privilégios dos homens. Em especial daqueles que são ricos. Em especial daqueles que são brancos. Distribuímos segundas chances como distribuímos tudo: desigualmente.
Por Manoela Miklos, do #AGORAÉQUESÃOELAS
No ocaso dos Jogos Olímpicos de 2016, me peguei pensando sobre isso.
Kobe Bryant, um dos maiores jogadores de basquete masculino da história, protagonizou uma célebre entrevista em 2003 em que pedia desculpas à sua esposa por ter cometido o que chamou de adultério. Mas se disse inocente diante da acusação de assédio sexual a uma jovem camareira de um hotel no Colorado, EUA.
Em 17 de agosto de 1998, o então Presidente dos Estados Unidos Bill Clinton pediu desculpas aos cidadãos de seu país pelo que chamou de “relações inapropriadas” com sua estagiária Monica Lewinsky. Clinton quase foi afastado do cargo, enfrentou um processo de impeachment, apresentou versões distintas a respeito do que haveria passado entre ele e a estagiária. Seu pedido épico de desculpas completou 18 anos esta semana. Ao lado da esposa, que hoje concorre pelo Partido Democrata ao cargo que era seu à época e desafia o sexismo na política, disse que havia “enganado seu povo e sua esposa e estava arrependido”.
Tiger Woods, ídolo do golfe, pediu desculpas aos seus fãs, seus colegas, funcionários e à sua família após um escândalo envolvendo relaçoes extra-conjugais, um acidente de carro e rumores de violência doméstica ocuparem machetes por meses. Num discurso grandiloquente, Woods levou o mundo às lágrimas em 2009 ao pedir a todos que o ajudassem. Perdoassem suas “trangressões”. E encontrassem em seus corações espaço para ele, apesar de ter traído a confiança de todas e todos.
Considerado por décadas o maior ciclista de todos os tempo, Lance Armstrong, conviveu por anos com acusações de doping. Dúvidas sempre pairaram sobre seu rendimento espetacular e ele sempre combateu violentamente os muitos relatos sobre suas trapaças. Em 2012, a conduta anti-desportiva e as muitas mentiras do ciclista foram provadas e ele perdeu os sete trofeus do Tour de France que ganhou consecutivamente entre 1999 e 2005. Em janeiro de 2013, Armstrong pediu desculpas ao mundo em entrevista à apresentadora Oprah Winphrey. Disse que sua história “mítica, perfeita” foi um engodo. “Passarei toda a minha vida me desculpando”, disse emocionado para uma audiência que bateu recordes.
Estes são pedidos de desculpas públicas célebres. Mas não precisamos ir longe para achar outros exemplos e comprovar a frequência do gesto. Esta semana, o Ministro da Saúde Ricardo Barros se desculpou pela inaceitável declaração de que homens cuidam menos da saúde pois trabalham mais que as mulheres. O Ministro apresentava uma pesquisa cujos resultados indicavam que um terço dos homens não procura a rede pública de saúde para prevenir doenças. Trata-se de um problema sério que merece atenção. Igualmente, o machismo do Ministro Barros é um problema sério. Igualmente, merece atenção.
Em poucas horas, a Olimpíada do Rio será encerrada oficialmente. Na grande mídia, veremos a tentativa de celebrar algum legado e o silêncio diante da militarização, das mortes no Alemão, na Favela da Maré. Duvido ouvirmos sobre os mais de 10 pré-candidatos à vereança assasinados na Baixada Fluminense. E veremos mais um pedido público de desculpa protagonizado por um homem. Ryan Lochte, nadador da delegação norte-americana, deve se desculpar novamente em rede nacional por ter depredado um posto de gasolina, mentido sobre sua responsabilidade e a de seus companheiros de equipe e dito que haviam todos sido vítimas de um assalto cometido por policiais. É o que promete a GloboNews, minutos antes de exibir uma matéria que afirma que 11 mulheres foram assassinadas em 11 dias no Rio Grande do Norte.
Lochte deve repetir que foi imaturo. Que foi garoto. Deve pedir desculpas pelo que chamou recentemente de “imprecisão” da sua versão dos fatos.
Tentei me lembrar de um pedido público de desculpas de uma mulher. Tive dificuldade. E me perguntei porque. Só me vieram cenas de lágrimas masculinas temperando declarações de arrependimento. Alegações de irresponsabilidade que mereceriam acolhimento, compreensão. Pedidos de segunda chance. Repito: segunda chance é mais um dos muitos privilégios masculinos. O benefício da dúvida, que supostamente é direito de todas e todos mas é concedido com muito mais frequência a eles, também.
As inconsistências dos depoimentos das que afirmam sofrer violência contra a mulher são julgadas com rigidez impiedosa. Revitimização é a regra na nossa cultura do estupro. Vagabunda. Mitônoma. Mentirosa. Aproveitadora. Fácil. Mereceu. Estão aí Amber Heard vs. Johnny Depp e Patrícia Lelis vs. o Deputado do PSC-SP Marco Feliciano que não me deixam mentir. Enquanto nós deixamos que eles mintam à vontade e os desculpamos depois.
A discussão sobre o legado dos jogos deve ser sobre tudo aquilo que se manterá perversamente igual – portanto, desigual – e aquilo que melhorou. Lochte é mais uma evidência de que tudo permanecerá do jeito que tem sido.
*Manoela Miklos é feminista, Doutora em Relações Internacionais, criadora da campanha #AgoraÉQueSãoElas e uma das editoras desta coluna.