O medo da Raça, por Sueli Carneiro

Fonte: Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

É emblemático o empenho com que alguns intelectuais se manifestam na arena pública para alertar a sociedade sobre os perigos da raça como suporte de políticas públicas de promoção da igualdade racial.

Mais curioso ainda é o fato de serem alguns desses intelectuais especialistas em negros. Negros que, enquanto objeto de estudo, alavancaram sólidas carreiras acadêmicas e adquiriram no plano das idéias absoluta realidade científica realizando o sonho de Sílvio Romero, para quem “o negro não é só uma máquina econômica; ele é, antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciência. (…) Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas… vão morrendo. (…) Apressem-se, senão terão de perdê-lo de todo”.

Porém, o negro real sobrevivente desse vaticínio, ao se tornar alvo de políticas públicas específicas, representa para os especialistas uma ameaça ao “estatuto jurídico republicano” do país. Ou seja, como virtualidade acadêmica, os negros existem; fora desse espaço, é desejável que desapareçam, porque o reconhecimento dessa racialidade, como uma dimensão das desigualdades sociais, promoveria a “racialização” de um Estado supostamente neutro em termos de raça.

A idéia é a de que a institucionalização da raça como categoria possuidora de direitos e oportunidades sociais, negada pelos processos de exclusão racial, resultaria na construção jurídica de um país racialmente apartado, contrário a sua suposta vocação a-racial. Uma tese que passa ao largo dos dois territórios racialmente apartados encontrados pela desagregação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para negros e brancos no Brasil. Aliás, alguém se lembra de ter visto um único menino branco no documentário Vida de Falcão, de MV Bill e César Athaíde?

Como foi possível que essa ideologia a-racial tão decantada por esses especialistas conformasse uma sociedade que é alva em todas as suas dimensões de poder, riqueza e prestígio e escura nas suas instâncias de pobreza e indigência humana? O país real jamais amedrontou as elites políticas e intelectuais. Elas jamais enxergaram nele uma ameaça aos nossos estatutos republicanos. O seu discurso nunca pôs em questão a imperiosa necessidade de romper com o exclusivismo da supremacia branca como condição para a desracialização da sociedade.

Tal como nos aponta Roseli Fischmann, “é mesmo necessário desracializar o debate, mas no sentido inverso: é preciso haver mais negros no debate. É simples constatar que a presença em cena pública é predominantemente branca, de formação européia. Há nuanças de tipo étnico ou religioso, mas de registro semelhante. Se o Brasil tem 46% de afrodescendentes, compreender o país implica compreender quase metade de sua gente, por sua própria voz, sem intérpretes”.

No entanto, a tradição cultural instituída a partir de Romero é a de que a autoridade da fala sobre o negro é do branco. Gilberto Freyre já decretara que “devemos nos considerar uma gente que goza de extraordinária paz e harmonia racial, contraste com aquelas partes do mundo em que ódios raciais existem sob formas, por vezes, as mais violentas, as mais cruas.

Em linha de continuidade, e com as devidas atualizações que os novos tempos exigem, os especialistas recomendam que, se a democracia racial ainda não é uma realidade, a construção de uma sociedade a-racial deve ser um ideal a ser perseguido pela sociedade brasileira. Até que esse ideal seja atingido, os negros que esperem, uma vez que, mais importante do que a eliminação da exclusão e discriminação de que padecem, é a preservação de nosso estatuto republicano, segundo o qual somos todos iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, apesar de ter sido consagrada, sob a sua égide, a supremacia branca em todas as esferas da vida social.

Mas é Norberto Bobbio que nos mostra sob que condições é possível assegurar a efetivação dos valores republicanos e democráticos. Para ele, impõe-se a noção de igualdade substantiva, um princípio igualitário porque ‘’elimina uma discriminação precedente”. Bobbio compreende a igualdade formal entre os homens como uma exigência da razão, que não tem correspondência com a experiência histórica ou com uma dada realidade social, o que implica que “na afirmação e no reconhecimento dos direitos políticos, não se pode deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justificam um tratamento não igual. Do mesmo modo, e com maior evidência, isso ocorre no campo dos direitos sociais” (Bobbio, 1992: 71).

Contudo, na direção oposta à de Bobbio e em fina sintonia com as elites políticas que, no Brasil, representam os interesses dos racialmente hegemônicos, há especialistas que se perfilam de forma decidida, às vezes contundente, até agressiva, para impedir a aprovação do Projeto de Lei 73/99, que institui a reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior para negros, indígenas e estudantes oriundos de escolas públicas. E argumentam que é para não colocar em risco o ideal de uma sociedade a-racial. Parece ser mesmo o Brasil para inglês ver.

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