Cartão Vermelho, por Sueli Carneiro

por Sueli Carneiro

Fonte: Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Foto: Marcus Steinmayer

Um novo caso de racismo repercute na mídia brasileira envolvendo um juiz de futebol negro e um coronel da Polícia Militar de São Paulo. Relatado em matéria intitulada “O cartão vermelho que despertou o juiz negro”, de Dorrit Harazim, no jornal O Estado de S. Paulo de 5/2/06, tomamos conhecimento de que, durante uma partida de futebol ocorrida no dia 4 de dezembro de 2005, no clube dos Oficiais da PM de São Paulo, o coronel Antônio Chiari recebe o cartão amarelo do juiz José de Andrade Neto.

Ensandecido, o coronel reage à punição agredindo racialmente o juiz: “Você tinha de ser dessa cor de merda para fazer isso! “, grita, passando os dedos pela pele do braço. “Preto! Macaco! Olha a sua pele, cor de merda!”, é o que diz o coronel e, em conseqüência, é expulso da partida. Diz o juiz que a cena provocou nele uma espécie de “apagão”.

Catatônico, lembra que continuou “ouvindo a voz do coronel, já fora do campo e com o jogo reiniciado. Dizia ele: “Não sei o que esse preto está fazendo aqui. Vou pedir que o coronel Cacau (coronel Luís Carlos dos Santos, presidente do clube) mande esse preto embora”. Assustado, o juiz entende o tamanho do problema. Diz ele que, “a partir dali, o coronel já estava se referindo ao meu trabalho, não mais à minha atuação como juiz”.

Foi uma humilhação presenciada por diversas testemunhas que reagiram em solidariedade ao juiz exigindo de sua parte uma tomada de posição. Uma associada do clube pronuncia a frase que lhe aumenta o pânico: “Olha, Zé, você tem de tomar uma atitude. Se você não fizer nada, eu vou abrir um boletim de ocorrência”. Outro pergunta se ele tem “sangue de barata”, pois, se fosse com ele, arrebentaria o coronel na “porrada”. Cobranças que, por mais bem intencionadas, por revelar indignação com o fato, paradoxalmente reiteram a visão do coronel, já que a incapacidade de reagir à altura à agressão parece sintoma da natural inferioridade de quem tem a “cor de merda” referida pelo coronel.
Segue-se para o juiz negro a dolorosa angústia de decidir o que fazer. Depois de dias de martírio, enfim, e, apesar das dúvidas em relação ao melhor procedimento a adotar, o juiz leva o problema às autoridades competentes, das quais ouve várias ponderações sobre os riscos de uma ação penal contra o coronel: de as testemunhas se recusarem a depor a seu favor, da perda do emprego, de tornar-se réu, por acusação da parte do coronel de danos morais, no caso de não conseguir caracterizar a agressão. Um detalhe adicional: ao saber que ele pretendia tratar o caso judicialmente, e como crime de racismo, o coronel manifestou interesse em ter com ele uma conversa. Dela o juiz destaca uma observação inusitada do coronel, que provoca sua surpresa: “Achei estranho ele perguntar se eu sabia que ele tinha sido comandante da Rota”.

Um caso exemplar que expõe a sofisticada teia de instrumentos acionados em situações de conflito racial no Brasil. A nossa tradicional carteirada, ou o “você sabe com quem está falando”, articulam, nesse caso, cor e patente significando a certeza de impunidade. Segue-se à carteirada a desqualificação da motivação da vítima: insinuou-se que, sendo ele alguém que “nunca teve nada” estaria visando obter dinheiro com a ação de racismo contra o coronel. E ameaças veladas completam o cerco para impedir a realização dos atos necessários para o restabelecimento da dignidade ultrajada. Essa, um luxo, para aqueles que sabem, como ninguém, o que é viver em estado permanente de vulnerabilidade social. Uma família extensa para atender, um emprego conquistado com muito esforço em risco: “Eu batalhei para fazer esse curso de arbitragem, batalho para dar aula, não tem como tomar uma atitude numa hora dessas (…) sou árbitro, estou apitando. Se dou porrada, a coisa vira pessoal e, como ele é diretor, pode até me mandar embora por justa causa”.

São alguns dos mecanismos que conformam a pedagogia de um cotidiano racista: treinamento para temer, obedecer, reverenciar e aceitar qualquer humilhação. Como definiu Foucault, são “mecanismos de coerção disciplinar” voltados para a produção de corpos e mentes dóceis adestrados aos processos de dominação. Nesse caso, presta-se à produção de “negros de alma branca” tão apreciados pelos racistas brasileiros.
Ao consumar a denúncia em boletim de ocorrência de 19 de janeiro, o juiz pôde enfim afirmar: “Me sinto mais inteiro”. São desses pequenos fatos, quase banais pela insistente repetição, que se retira o aprendizado do que é ser negro no Brasil. Se certas atitudes de um negro são intoleráveis para um coronel branco no contexto de um simples jogo de futebol, em que ele se limita, apenas, a cumprir regras de suas atribuições de árbitro, é de se supor o que ocorre nas caladas das noites, quando o que está em jogo é supostamente a preservação da ordem social e a contenção de elementos considerados um perigo para a ordem pública.

Um cartão vermelho despertou a consciência desse árbitro negro.
Cada negro encontra o seu ao longo da vida. Muitos tornam-se daltônicos porque não raro o despertar da consciência e a realização dos gestos que ela necessariamente impõe podem equivaler, em diferentes níveis, a um cartão vermelho à vida.

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