Em entrevista aos Jornalistas Livres, Riccardo Cappi, doutor em Criminologia e professor de Direito da Universidade Estadual da Bahia, defende que atos infracionais cometidos por adolescentes sejam tratados com diálogo e criação de vínculos. Para ele, a punição como castigo não alivia a sensação de insegurança
Enviado por Maria Carolina Trevisan via Guest Post para o Portal Geledés
No Medium
O debate sobre segurança pública no processo de democratização do Brasil sofreu uma série de interrupções, descontinuidades e contradições desde a promulgação da Constituição de 1988. Com a questão dos direitos de crianças e adolescentes não foi diferente. O país aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, uma das legislações mais avançadas do mundo sobre os direitos dessa parcela da população — e também muito criticada. Com normas voltadas a garantir direitos humanos no que se refere aos atos infracionais cometidos por adolescentes, tem gerado reações sistemáticas de parlamentares. Atualmente, a maioria dos deputados federais defende substituir uma das cláusulas pétreas da Constituição Brasileira (dispositivo constitucional que não pode ser alterado), que define crianças e adolescentes como “prioridade absoluta” e que traz uma série de direitos assegurados, para recrudescer as políticas que tratam de adolescentes em conflito com a lei. “A ideia de que o castigo resolve os problemas é de fácil compreensão e simples elaboração”, explica Riccardo Cappi, doutor em criminologia e professor de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana, além de professor colaborador do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e do Mestrado Professional em Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia.
“O castigo como solução para a insegurança também propõe um ganho fácil, nesse caso, um ganho eleitoral. É muita facilidade para quem utiliza uma estratégia como essa”, afirma Cappi.
Cappi estudou os discursos parlamentares sobre a redução da maioridade penal entre 1993 e 2010, em sua pesquisa de doutorado. Nesse período, houve diversas tentativas de reduzir a idade penal para 16 anos. O estudo concluiu que a demanda por fazer algo contra a insegurança é legítima. Mas se apoiar no medo para determinar medidas legislativas mascara outros interesses.
“O medo é uma ferramenta muito rentável para se ter sistemas muito rentáveis.”
“Quando temos medo pensamos menos. Com a alavanca de uma mídia que tem por objetivo divertir, tira-se o foco das questões mais importantes, facilitando o nosso passar do tempo. Nesse sentido, o medo, com sua carga fascinante, é um componente rentável do ponto de vista da comunicação, do ponto de vista eleitoral e do ponto de vista econômico. Permite a reprodução de uma demanda. Então, aquilo que os marqueteiros se empenham em resolver com estudos e pesquisas, com o medo, corta-se caminhos.” Ele ressalta: “as pessoas amedrontadas consomem mais.”
Leia, a seguir, a entrevista completa e entenda o que significa, entre todos os interesses, combater a insegurança reduzindo a maioridade penal.
Jornalistas Livres — Que papel tem desempenhado a sensação de medo para a redução da maioridade penal?
Riccardo Cappi — Em um projeto político-econômico-midiático, termos uma população amedrontada gera interesses diversos. O medo se reproduz. Nesse sentido, a redução da maioridade penal ganha força enquanto proposta em períodos em que existe muito medo. Se eu estou com medo, construo um muro de três metros, depois posso construir um muro de seis metros para me sentir ainda mais seguro. O que eu não estou percebendo é que junto com o muro cresce meu medo. O medo é uma alavanca forte, mas não é a melhor opção para cogitar e imaginar políticas públicas.
JL — Existe alguma lógica entre reduzir a idade penal e enfrentar a insegurança, do ponto de vista das políticas públicas?
RC — Paradoxalmente, não. Porque as medidas que trabalham o medo por fora praticamente o reforçam. Eu venço o medo se eu me trabalhar por dentro, não por fora. No âmbito da segurança pública eu consigo pensar em respostas interessantes, não somente pelos obstáculos para a prática do crime, mas pelas dinâmicas relacionais, que inteferem na maneira das pessoas viverem entre si. O que contribui para reduzir o medo é, por exemplo, as pessoas poderem ir para as ruas se apropriar do espaço público, tornando-o mais seguro. Não se torna um espaço mais seguro porque tem mais câmeras, vigias. Não posso pensar na superação do medo inteiramente por fora. Cada um de nós tem algo a ver com nossos próprios medos.
JL — Ou seja, a postura que tem se adotado diz respeito a dimensão econômica, a quem pode comprar esses serviços, e não a uma política pública.
RC — Como diz um amigo meu, “temos soluções em busca de problemas”. As soluções já existem: os sistemas de vigilância. São produtos que buscam uma demanda. E o medo está ali para alimentar essa demanda.
JL — Como a mídia se coloca nesse contexto?
RC — A mídia é uma alavanca forte porque produz uma realidade com significação incorporada, com kit interpretativo anexo. Desenvolve um papel de alimentador simbólico da leitura do problema e de sua solução, que se encaixaria perfeitamente diante desse problema. Daí vem duas questões que considero importantes: a leitura que se faz do problema (os delitos acontecem por um lado e as pessoas estão com medo por outro lado); e a leitura da parte que cabe aos adolescentes nessa insegurança. Do ponto de vista estatístico, sabemos que menos de 1% dos delitos graves como homicídios são praticados pelos adolescentes. Há, portanto, uma hiper representação dos jovens como causa do problema. Tem uma questão que não é quantitativa.
“Se eu, em um telejornal de meia hora utilizo cinco minutos para dizer que um adolescente matou uma pessoa, a estatística psicológica da contribuição dos adolescentes na criminalidade aumenta dramaticamente.”
Nesse sentido, existe uma estatística dos números e existe a estatística que vive na cabeça das pessoas. Isso é um elemento crucial. Pode nem haver um esforço consciente, coisa da qual eu duvido.
JL — O fato de serem os jovens negros as principais vítimas (e não os agentes) de homicídios no Brasil não deveria estar mais explicitado no noticiário sobre o tema?
RC — Nessas reportagens, em geral, os jovens integram os chamados “grupos perigosos”. Então, os jovens negros de periferia participam desse imaginário na condição de agressores. Ora, sabemos que são esmagadoramente representados no grupo das vítimas. Tem aí um paradoxo que precisamos entender. A morte de jovens negros e pobres não gera o mesmo tipo de indignação. Então, o elemento medo, elege seus alvos diante de uma indignação que omite outros alvos, que não se preocupa com o número de mortes que passa de 50 mil por ano. Isto me parece um paradoxo tipicamente brasileiro que precisamos resolver.
JL — O que significa criar uma nova lei para tentar solucionar o problema da insegurança?
RC — A redução da maioridade penal é tida como uma ação que soluciona. Em primeiro lugar eu gostaria de dizer que sim, é uma ação, mas uma ação de um tipo muito especial: a produção de uma lei. É preciso ver como será implementada. É uma lei que aposta, pelo menos no imaginário das pessoas, no aumento do castigo. É a ideia de que o castigo contribui para a resolução dos problemas. Quer seja porque irá dissuadir as pessoas, quer seja porque as pessoas presas não terão mais condição de prejudicar a sociedade.
Ora o que nós temos é um castigo que sempre foi utilizado, formalmente, informalmente, de forma institucionalizada, não institucionalizada. E não se tem a impressão de que esse castigo tenha tido um efeito interessante sobre a evolução da criminalidade, muito pelo contrário. Temos uma população carcerária estourada, temos um super encarceramento (diz respeito à maneira como os juízes adotam as medidas de privação de liberdade) e isso não parece contribuir para a tão esperada melhoria da segurança.
JL — É isso que você chamou de sanção hostil, aflitiva, no seu artigo?
RC — A ideia é que quando a gente pensa na criminalidade, em condutas de transgresão, ela tem uma imagem padrão: a transgressão é aquela que atinge a vida ou a propriedade de maneira visível, espetacular. Não temos em mente outras transgressões que também atingem a vida e a propriedade, mas que não são tão visíveis, tão espetaculares. A transgressão sobre a qual pensamos é a transgressão dos pobres, das pessoas negras e com baixo nível de alfabetização. Por outro lado, quando se pensa em resposta punitiva — parece uma obviedade — , ela se dá em contexto de hostilidade. Ou seja, o alvo da resposta é hostilizado da maneira mais forte possível.
“Eu diria que a hostilidade é o primeiro passo importante para que o sujeito avance na carreira criminal. Nesse sentido, a hostilidade constitui um ingrediente, um fermento importante para a carreira criminal.”
Se a gente parar para pensar, chegaremos à ideia de que a hostilidade não permite ao sujeito se desenvolver em suas relações, em suas capacidades de se relacionar com os outros. Posso muito bem conceber uma norma sustentada de maneira firme, mas com uma sanção que não envolva necessariamente a hostilidade. A hostilidade paradoxalmente piora o problema.
JL — No seu artigo você coloca quatro modos de pensar na evolução do pensamento dos parlamentares. Que discursos são esses?
RC — O que me interessava era estudar as maneiras de pensar dos parlamentares quando debatem a maioridade penal. Faço a hipótese de que os parlamentares pensam e ao mesmo título em que outros grupos sociais poderiam estar pensando. Através de um percurso metodológico de análise de conteúdo, se torna possível identificar quatro grandes maneiras de pensar. Primeira coisa interessante é dizer que não são unicamente duas. Dentro de cada grupo — aqueles que são a favor da redução da idade penal e aqueles que são contrários à redução da maioridade penal — posso ainda identificar duas grandes formas de raciocínio. Dentro daqueles que tem a redução da maioridade penal como objetivo, eu diria que existem ainda dois grupos: um que funciona discursivamente às margens do Estado de Direito, que diz “o Direito atrapalha. Nós queremos punir sem moderação”, que trabalha no limite de discursos como “queremos poder eliminar”. Esse é um grupo não importante, mas que pode crescer, precisamos permanecer vigilantes, ou seja, um grupo para o qual o Estado de Direito se torna um empecílho. Com esse grupo é difícil a discussão porque a negação do outro compõe a discussão, são argumentos de punho na mesa, não estão para discussão.
Dentre aqueles que propõem a redução da maioridade penal, tem a turma que está mais propensa a dizer “iremos punir reduzindo a maioridade penal mas dentro de certas condições”. Acredita no castigo dentro das condições e das regras do jogo do Estado de Direito e da democracia. Da mesma forma, entre aqueles que se opõem à redução da maioridade penal também existem dois grupos: um que entende que o Estatuto pune o suficiente e que seria importante punir os adultos que estão aliciando os jovens, ou seja um grupo que quer manter as coisas como estão porque a punição já existe; e o último grupo é constituído por aqueles que duvidam do caráter eficaz da punição. Fazem parte do grupo que sustenta o ECA, não porque pune o suficiente, mas porque propõe outras maneiras de enfrentar as condutas delitivas. Esse quarto grupo é aquele que se diferencia mais, enquanto o segundo e o terceiro são relativamente próximos.
“O castigo funciona como o resultado de um inércia. Quando não sabemos o que fazer, punimos.”
Isso acontece com nossos filhos, nossos amigos, com nossos namorados, nossas namoradas. Quando as coisas vão mal a gente se utiliza de uma ferramenta que é infligidora de dor, para excluir, negar, eliminar. A batalha do abandono do castigo não é vencida de uma vez por todas, precisa vencer a inércia. Quando nós pensamos em dizer não à redução da maioridade penal, e isso é uma posição pessoal, o que está em jogo é a possibilidade de se pensar em formas diferentes de se intervir diante de situações de criminalidade, diante dos delitos.
JL — O que poderia ser proposto para a sociedade?
RC — Eu não preciso propor porque as coisas já existem e já têm êxito. Por exemplo, a população conhece pouco as penas alternativas, ou penas restritivas de direitos. São formas de intervir depois do delito que não envolvem a prisão. A pena de prisão não é a única. Existem muitas alternativas dentro da própria sociedade de lidar com situações problemáticas. Por exemplo, um elemento de reflexão atualmente é aquilo que diz respeito à justiça restaurativa. É a possibilidade de se reparar os danos e prejuízos decorrentes de um crime. A ideia não é tanto punir e sim solucionar o problema.
“Sobre a redução da maioridade penal, os discursos apelativos a favor da redução falam em crimes, em sociedade assolada pelos bandidos, falam de vítimas. Mas, propriamente falando, a redução da maioridade penal não traz absolutamente nada para as vítimas.”
Quando pensamos em hipótesis como a justiça restaurativa, que precisa ser discutida, que não é a panacéia, que não constitui uma legitimação do sistema penitenciário, e sim uma tentativa de pensar sua transformação onde for possível, nesse sentido, provavelmente as pessoas concreta e diretamente afetadas pelos delitos teriam condição de serem contempladas na resposta, quer seja da sociedade quer seja do Estado.
JL — Que outras medidas preventivas teriam de ser tomadas para a diminuição da violência?
RC — Nas cidades precisaríamos ter, diante de certos tipos de criminalidade, uma capacidade de observação e de análise dos problemas que obviamente irão afetar uma série de outras questões ligadas ao urbanismo, ao emprego, à educação, às oportunidades de desenvolvimento, ao lazer. Eu diria que precisamos de um trabalho atento, analítico e de acompanhamento das situações, tudo o que o Direito Penal não consegue fazer.
“A questão da segurança deveria sair da esfera exclusiva do Direito Penal e da polícia. Nós teríamos uma abordagem interdisciplinar e intersetorial onde as questões de segurança seriam esmiuçadas como problema e não como delitos. Quando elas são delitos, provavelmente já é tarde demais.”
O Direito Penal chega quando a coisa já aconteceu e intervém pontualmente a respeito do crime. Esse outro tipo de atuação, acompanhado dessa análise, envolveria um trabalho de monitoramento, especialmente voltado para a segurança. Precisamos identificar quais são as fontes de problemas numa determinada comunidade. Determinadas questões precisam ser enfrentadas com seriedade. E aqui eu quero tratar de duas. A primeira, o tráfico de drogas. Está tendo uma campanha intitulada “É da proibição que nasce o tráfico”. É um convite a pensar de que maneira a proibição penal pode ser não uma conseqüência do problema e sim um elemento que se situa na causa dos problemas. Ou seja precisamos tratar com maior capacidade analítica as questões referentes aos fenômenos criminais.
Um segundo elemento, também importante é ligado às políticas de segurança pública.
“A segurança pública parece fugir ao controle democrático. Parece se desenvolver fora da órbita de controle da sociedade.”
Nós temos, por exemplo, uma alta letalidade policial, que alcança principalmente jovens negros de periferias. Essa problemática não alcança, infelizmente, o nível de problema importante. Ora, esse é um problema importante, não a redução da maioridade penal! É sabermos que nós temos, ainda, por diversos motivos, um problema diante do qual a sociedade tem condição de dar um salto de qualidade. Tem condição de dizer que não quer mais ser uma sociedade na qual o nível de homicídio, inclusive de letalidade estatal, tão alto seja tolerado.
JL — Por que essa importância é ignorada?
RC — Eu diria que existem poderes objetivos. A sociedade brasileira, me parece, é uma sociedade hierarquizada. Com grandes desigualdades produzidas, inclusive, por nossos olhares. Estou pensando principalmente no racismo.
“Uma sociedade elitista e racista não tem condição de se indignar pelas inúmeras mortes de jovens negros como se indigna, por exemplo, pela morte também inaceitável de pessoas de classe média, de pessoas brancas.Nós não alcançamos ainda esse patamar para alavancar uma política que seja prioritariamente — e não colateralmente-, voltada para a não existência desse sangue derramado, que é essencialmente o sangue negro.”
JL — Sobre a situação atual de votações acerca da redução da maioridade penal, como se pode enfrentar?
RC — Pela correlação de forças que nós temos no Parlamento, existe a possibilidade da redução da maioridade passar. Eu entendo que isso ainda não é uma certeza. Em dois sentidos: não é uma certeza porque a força da movimentação popular pode fazer com que quem toma as decisões reveja a sua maneira de pensar. Essa força é sim a força das ruas, nós temos um aprendizado muito grande de junho de 2013, com as manifestações populares de rua. Precisamos de uma força das ruas que ganhe espírito crítico. O papel das pessoas que pensam essas questões é de provocar a reflexão. Eu parto da ideia de que quem quer reduzir a maioridade penal tem uma lógica e demanda legítimas. Não posso desqualificar, desde que seja dentro da alçada dos padrões da democracia. Mas gostaria de convidar a pensar sobre os resultados práticos concretos dessa medida. Esse seria um primeiro movimento.
Um segundo movimento, mais técnico, e espero não chegar nesse momento, seria aquele que consistiria em pensar, se houver redução, em uma redução tecnicamente calibrada. Não à redução para todas as situações envolvendo jovens entre 18 e 16 anos. O que foge à reflexão da maioria das pessoas é que quando pensamos a redução, pensamos diante de crimes graves. Caso a redução da maioridade penal passe de forma geral e irrestrita, alcançaria da mesma forma o autor de um homicídio e o autor de um furto no supermercado. Caso seja realmente necessário, é necessário pensar uma leitura e uma prática discriminada, diferenciada, na redução da maioridade penal.
Não é a atitude de defesa que produz os melhores frutos.
“A atitude que produz os melhores frutos é uma atitude de diálogo, de escuta, de olhar franco, onde as normas existam, onde as sanções existam, mas não sejam principalmente marcadas no modelo da dor. A sanção mais importante é aquela que permite restabelecer o diálogo, com estabelecimento de vínculos significativos com adolescentes.”
É nesse sentido, dentro do marco dos direitos humanos, que deve se alimentar nosso debate sobre segurança pública. Talvez este momento, quando se fala de redução, seja um rico, dentro do qual nós possamos acordar com essas novas maneiras de pensar caminhos e respostas para os nossos problemas de segurança.