O Negro na Sala de Aula

A educação é um campo com seqüelas profundas de racismo, pra não dizer, um veículo de comunicação da ideologia racial branca. Quase nada aprendemos em nossa passagem pela sala de aula sobre contribuições, valores, historia e realidades relacionadas ao negro no Brasil. Essa constatação não só é feita no que diz respeito ao ensino básico, mas vai se reproduzir nas instancias de preparação dos educadores ou seja no ensino superior.

Fonte: Africa

“Alguns de nós não receberam na sua educação e  formação de professores e educadores o necessário preparo  para lidar com o desafio que a problemática da convivência com a diversidade e as manifestações de discriminação dela resultadas colocam na nossa vida profissional. Essa falta de preparo , que devemos considerar como reflexo do mito da democracia racial, compromete, sem duvida, o objetivo fundamental  da nossa missão no processo de formação dos futuros cidadãos  responsáveis  de amanhã. Com efeito, sem  assumir nenhum complexo de culpa, não podemos  esquecer que somos produtos de uma educação eurocêntrica e que podemos reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa sociedade”.[2]

 

O processo educacional na história do Brasil tem, sistematicamente, privilegiado a população branca em detrimento dos afro-brasileiros. A história do Brasil é construída com base no trabalho escravo. Os negros em um período de 350 anos garantiram aos brancos escravocratas as bases sócio-econômicas para o desenvolvimento, inclusive no campo da educação. No período pós abolição aos negros, dentre tantas proibições, o acesso à educação se constitui em um dos maiores e mais perverso mecanismo de exclusão social, cujas conseqüências chegam até nossos dias. A restrição dos negros à educação na historia do Brasil vem desde 1854 quando o Decreto 1.331 de 17 de fevereiro  impedia aos escravos o acesso à educação nas escolas publicas. Já no Decreto 7.031 de 6 de setembro de 1878 restringia ao horário noturno a presença dos negros nas escolas[3].

 

É verdadeiro o entendimento que a educação nunca foi para todos em nosso país. Entretanto é corrente a noção de que “quem quer consegue”, ou seja, é uma questão de mérito. A concepção meritocrática que vem sendo utilizada como fundamento para justificar a não implementação de políticas públicas específicas para os afro-descendentes “esquece” de analisar a questão do privilégio. O que muitos chamam de mérito, nada mais é que privilégio.

 

Como verificar mérito e compará-lo entre segmentos tão distintos no que diz respeito às oportunidades?

 

É interessante observar como essa questão recebeu tratamento por algumas universidades norte americanas na recolocação e análise deste problema.

 

“Universidades como a da Califórnia e a do Texas em Austin redefiniram sua concepção de mérito, tornando-a mais inclusiva, à medida que contemplaram na escolha de candidatos a avaliação da capacidade de superar dificuldades e obstáculos que encontraram na vida, o que teria demandado desses candidatos um esforço maior que aquele dispensado por outros que experimentaram condições mais favoráveis. (…)  O mérito passaria a significar, então, a capacidade que os estudantes têm de, em condições adversas, superarem as dificuldades encontradas por meio do esforço realizado, mesmo que os resultados ainda não sejam os mesmos que os daqueles estudantes que se encontravam em situações bem mais favoráveis. O mérito concebido com medida justa do empenho de cada um. Para além de uma mera retórica, essa concepção tem se mostrado não só necessária, diante das desigualdades de oportunidades de acesso existentes, mas também viável, como indicam os resultados positivos alcançados pelas instituições que utilizaram programas de ação afirmativa”.[4]

 

Os mecanismos para auferir “méritos” tão propalados na contemporaneidade tendem a colocar em competição os atores de um processo fundado na desigualdade de condições e oportunidades. Em decorrência dessa concepção, nega-se no ambiente educacional a valorização da diversidade étnica no que se refere à inclusão presencial dos negros, em conformidade com sua representação na população brasileira.

 

A diversidade é uma riqueza presente na sociedade brasileira, que necessita ser assegurada constitucionalmente, para que se cumpram os princípios de equidade e justiça na educação. O reconhecimento dessa realidade, tanto do ponto de vista científico-acadêmico, quanto de políticas públicas, significa respeitá-la, valorizá-la e promovê-la na sua pluralidade de manifestações superando, assim, as desigualdades. “O enfrentamento da desigualdade racial brasileira solicita uma política pública afirmativa que enfrente o desafio de integrar as perspectivas ‘universalista’ e ‘diferencialista’ na construção de uma política educacional anti-racista orientada pelos valores da diversidade e o direito à diferença”[5].

 

Contemplar a diversidade necessariamente passará por reflexões profundas de como estão estruturadas a práticas do racismo na vida da sociedade brasileira, bem como que estratégias utilizar para superá-las.

 

“Quando pensamos em fatores  que podem dificultar e até mesmo impedir a implementação de um conjunto de medidas públicas de ação afirmativa em prol do combate ao racismo e da promoção da população negra no sistema de ensino, duas formas de racismo devem ser consideradas: o racismo institucional e o racismo individual, presentes nas instituições e nos profissionais do sistema de ensino. O primeiro tipo de racismo está ligado à estrutura da sociedade, e não dos seus indivíduos isoladamente. O racismo institucional engendra um conjunto de arranjos institucionais que restringe a participação de um determinado grupo racial, forjando uma conduta rígida frente às populações discriminadas. No caso das políticas educacionais, nota-se uma fixidez de comportamento negativo frente as propostas de implementação de políticas de ação afirmativa”. [6]

 

 

A lei 10.639 que coloca o ensino da Historia da África e da Cultura Afro-brasileira nos currículos do ensino básico das redes publica e privada de educação no Brasil, segundo BARROS,

 

“veio estabelecer um marco legal para que a sociedade organizada compreenda a injustiça de um sistema educacional que discriminava o negro e seus descendentes privando significativa parcela da sociedade brasileira da compreensão da historia dos afrodescendentes na constituição e formação social do país”[7]

 

Com o evento da lei, algumas iniciativas no processo de sua implementação vem sendo desenvolvido com a colaboração decisiva da sociedade civil organizada.  Uma constatação corrente no meio educacional é a lacuna, o vazio do ponto de vista do conteúdo na formação dos professores. Como ensinar aquilo que não se aprendeu? Como abordar um tema que tem permanecido como tabu na sociedade brasileira.

 

Poucos querem falar de negro, muito poucos gostam de falar de negro no processo educacional, menos ainda os que sabem falar de negros numa sala de aula, numa perspectiva de formação cidadã. Diante de tais questionamentos, o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas desencadeou um processo continuado de tratamento da questão. Foi sempre uma preocupação institucional provocar e suscitar a discussão bem como subsidiar tal discussão, visando qualificar os debates e as ações. Com essa concepção foi organizado o Curso de Capacitação de Professores em Historia da África e Cultura Afro Brasileira. O curso foi estruturado em dez temas compreendidos como de grande relevância para a implementação da lei. Os mesmos foram trabalhados por professores mestres, doutores e especialistas, que tiveram oito horas de trabalhos em sala de aula em cada uma das cinco turmas de educadores, agrupados em numero de sessenta em cinco regiões do Estado do Rio de Janeiro.

 

Objetivando o envolvimento dos estudantes do Ensino Médio nas discussões dos conteúdos apontados pela lei, foi organizado o Concurso de Redação nos anos de 2006 e 2007. No primeiro ano o Concurso foi realizado apenas no estado do Rio de Janeiro e contou com a participação de mais de duzentas escolas dos diversos municípios do estado. Já no ano de 2007, além de escolas do Rio de Janeiro, o Concurso se estendeu também às escolas de São Paulo. Nesse processo, escolas, professores, e pessoas ligadas aos movimentos sociais e à educação tiveram envolvidos em debates, palestras, discussões do filme “Resistência Negra no Brasil: A construção da Igualdade Racial”, material preparado com tal finalidade. Veiculou também pelas escolas a Revista A Cor do Brasil, como instrumento de subsidio aos alunos no processo de elaboração de suas redações. Como materiais para didáticos foram produzidas seis volumes da Coleção Cadernos do CEAP, onde foram abordados os temas que perfazem os conteúdos da lei 10.639.

 

Esse processo evidenciou a necessidade de tratarmos, no processo educacional, dos temas relacionados às culturas negras, à diversidade e pluralidade cultural como riqueza necessária para o reconhecimento das identidades.

 

Quando sei quem sou, tomo consciência de minha identidade, me coloco como ator social de um modo qualitativamente relevante no processo de interação social. O ser humano é um ser social, um ser cultural. Apropriar-se da identidade é reconhecer as diferenças como componentes fundamentais na vivencia cidadã em uma determinada sociedade. Tal reconhecimento é condição indispensável para a convivência respeitosa ante a diversidade que caracteriza a dignidade do ser humano.

 

Segundo a música de Lecy Brandão, “na sala de aula é que se forma um cidadão, na sala de aula é que se muda uma nação”. Essa concepção explicitada na música nos proporciona uma reflexão a respeito de como o processo educacional influencia decisivamente no que cada um de nós é na sociedade.

 

A construção de uma nação com cidadãos partícipes exige a explicitação no cotidiano escolar dos valores socioculturais constitutivos das mais profundas aspirações, dos sonhos e esperanças dos mais diversificados segmentos que compõem a nossa sociedade.

 

Nesse contexto, o diferente não mais será objeto de medo e de exclusão, Será apenas diferente. E como tal, digno de ser conhecido, respeitado, valorizado e integrado na convivência humana.

 

Uma nova práxis educacional nos permitirá avançar qualitativamente no processo de superação das costumeiras praticas de exclusão. Ademais, possibilitará vislumbrar reais caminhos de construção do ser negro, com auto-estima, com orgulho de ser e com horizontes abertos.

 

A sala de aula atuará como espaço de crescimento humano e os educadores como desencadeadores de horizontes novos para o desabrochar  dos elementos e valores  da africanidade presente na sociedade brasileira.

 

A educação então se tornará um processo de cultivo do saber e da riqueza humana numa perspectiva de engendramento de um mundo mais solidário, verdadeiramente democrático e justo. E então sim,

“… vai ser tão bonito se ouvir a canção cantada de novo”..

“…vamos sonhar companheiros, sonhar bem ligeiro, sonhar em mutirão”.

 


[1] José Geraldo da Rocha, Dr em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC/Rio; Professor de Antropologia, Sociologia e Cultura Brasileira na Graduação e Mestrado da  UNIGRANRIO; Professor do Programa de Estudo Sobre o Negro no Brasil – PENESB/UFF  e Agente de Pastoral Negro.

[2] MUNANGA, Kabenguele. Superando o Racismo na Escola. 2ª edição revisada, Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação Continuada , Alfabetização e Diversidade,2005, p.15.

[3] BARROS, José Flavio Pessoa de. Xangô, a Historia que a escola vai poder contar. In: SANTOS, Ivanir dos, ROCHA, José Geraldo da (orgs). Diversidade & Ações Afirmativas.. Rio de Janeiro: CEAP, 2007. p.36

[4] MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa no ensino superior: entre a excelência e a justiça racial. Educ. Soc. vol.25 no. 88 Especial Campinas Out. 2004

[5] CAVALLEIRO, Eliane & HENRIQUES, Ricardo. Educação e Políticas Públicas Afirmativas: elementos da agenda do Ministério da Educação. In Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Edição MEC /BID UNESCO, Brasília, 2005. P 212.

[6] HENRIQUES, Ricardo e CAVALLEIRO, Eliane, in SANTOS, Sales Augusto dos (org). Op. Cit p 213

[7] BARROS, José Flavio Pessoa de .op.cit.

 

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